A produção de alimentos e a conta de US$ 10 trilhões

Estudo estima que transformação dos sistemas alimentares podem gerar benefícios trilionários, mas para que isso aconteça é preciso ir além da visão generalista do setor

Por Aline Locks* – 10.000.000.000.000. Escrito assim, em numerais, com todos os zeros necessários, dez trilhões impressionam ainda mais. Colocando a sigla US$ antes, para indicar uma unidade monetária (dólares, no caso), tem-se uma quantia monumental, equivalente a quase 5 vezes a soma das riquezas produzidas por ano no Brasil, nosso popular PIB, que ficou em US$ 2,17 trilhões.

É essa a dimensão dos benefícios anuais possíveis de obter com a transformação dos sistemas alimentares para modelos mais sustentáveis, segundo um ambicioso estudo realizado por um grupo internacional de cientistas liderado por Johan Rockström, do Instituto Potsdam para Pesquisa do Impacto Climático e um dos autores do estudo.

Em entrevista ao jornal britânico The Guardian, Rockström sintetizou o trabalho em uma frase grandiloquente: “O sistema alimentar global tem nas mãos o futuro da humanidade na Terra”.

A conta trilionária tem potencial para gerar polêmicas e contribuições para o debate em torno de mudanças necessárias na busca por modelos de produção mais responsáveis e mais inclusivos.

As polêmicas começam na abordagem dada pelos estudiosos à questão. Eles partiram do conceito de que os atuais sistemas alimentares embutem uma série de “custos ocultos”, que iriam do uso de recursos naturais aos impactos ambientais e médicos resultantes da produção e do consumo dos alimentos.

Entrariam, assim, nessa conta os efeitos das emissões de gases do efeito estufa em todas as etapas das cadeias da indústria de alimentos – que eles apontam com um terço das emissões globais – e os danos provocados por “condições meteorológicas extremas” às colheitas.

E mais: distorções no sistema de produção e distribuição agravariam quadros de insegurança alimentar em algumas regiões do planeta, que, se não corrigidas, deixariam, sempre segundo o estudo, 640 milhões de pessoas abaixo do peso ideal, ao mesmo tempo em que aumentaria as taxas de obesidade, em outras regiões, em até 70% até 2050.

Diante desse cenário generalista, eles estimaram o custo dos sistemas alimentares em US$ 15 trilhões e, para mitigá-lo, propõem mudanças que, segundo dizem, seriam capazes de promover uma transformação benéfica nessas diversas frentes.

A base de todas as mudanças estaria no redirecionamento de subsídios e incentivos fiscais voltados para os sistemas alimentares – e é aqui que se vislumbra a grande contribuição do trabalho, ao propor uma discussão relevante, desde que vislumbre a especificidade do modelo de produção em cada região, ao invés de simplesmente demonizar o setor.

Segundo os pesquisadores, grande parte desses incentivos hoje servem para financiar modelos de monoculturas em grande escala, que dependem de grandes quantidades de fertilizantes e pesticidas.

Eles defendem que os subsídios deveriam ser direcionados prioritariamente a pequenos agricultores, com produção mais diversificadas e que poderiam produzir em sistemas que funcionariam como sumidouros de carbono e reservas de diversidade.

A grande questão, aqui, é que o estudo, de certa forma, vilaniza a chamada agricultura empresarial, desconsiderando seu papel relevante justamente na promoção da segurança alimentar. Promover um modelo mais diversificado é relevante, assim como é fundamental contar com a capacidade produtiva, tecnológica e logística de players mais estruturados.

Na outra ponta, do consumo, afinal, eles pregam também a necessidade de melhor distribuição alimentar e revisão na dieta das populações, ajudando a combater a insegurança nutricional. Segundo o relatório, com mais segurança alimentar, a subnutrição poderia ser erradicada até 2050, evitando-se 174 milhões de mortes prematuras e contribuindo para que 400 milhões de trabalhadores agrícolas pudessem obter rendimentos suficientes para sua sobrevivência.

Números impactantes são uma arma poderosa de comunicação. Com eles, estudos como esse ajudam a chamar a atenção para questões relevantes, embora possam, ao mesmo tempo, gerar visões excessivamente acadêmicas de fatos que, na prática, revelam-se mais complexos e diversos do que os cálculos frios podem indicar.

Durante décadas o mundo consumiu os impactos positivos dos avanços da revolução verde do agronegócio, que permitiram a intensificação da produção agropecuária, a redução do preço dos alimentos e seu acesso a eles, ajudando a ampliar a qualidade de vida de bilhões de seres humanos.

É certo que o modelo tem distorções e que o capital tem poder para indicar caminhos. Incentivos financeiros são um idioma global e a ferramenta necessária para conduzir, de fato, milhões de produtores rurais para uma agricultura regenerativa de baixo carbono.

A questão é que, por enquanto, qualquer desejada transformação de sistemas alimentares tem sido feita sobretudo com recursos de produtores responsáveis, com pouca contrapartida. Os trilhões ficam apenas no papel.

Aline Locks é CEO da Produzindo Certo

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