Gado franqueiro, identidade dos gaúchos, enfrenta risco de desaparecimento; entenda

Moldada pelas missões jesuíticas e essencial para a formação cultural do Rio Grande do Sul, a raça de gado franqueiro sobrevive graças ao esforço de poucos criadores.

O gado franqueiro, também conhecido como Orelhano ou Chimarrão, é mais do que uma raça bovina: é um testemunho vivo da história, da cultura e da identidade dos gaúchos. Presente nos Campos de Cima da Serra desde o século XVII, o animal se tornou um símbolo do Rio Grande do Sul e um dos pilares da ocupação humana e econômica do território. Entretanto, aquilo que por séculos moldou a paisagem e a vida nos pampas hoje luta contra o risco de desaparecer. Atualmente, restam poucos exemplares nos municípios de São José dos Ausentes e São Francisco de Paula, mantidos por criadores que enxergam no franqueiro um patrimônio a ser preservado.

Entre esses guardiões está Sebastião Fonseca de Oliveira, presidente da Associação Brasileira de Criadores de Bovinos Franqueiros (ABCBF), poeta, declamador e pesquisador das origens do povo serrano. Em sua propriedade, ele mantém cerca de 30 animais, preservando um legado que vem desde os primeiros povos missioneiros. “Existe todo um saber daqueles tempos sobre a raça franqueira que não foi registrado: dos tropeiros, dos pretos velhos… Tudo isso está se perdendo, pois não há registros”, lamenta.

A história do franqueiro se confunde com a própria formação do Rio Grande do Sul. No início do século XVII, a região era considerada “terra de ninguém”, habitada por Guaranis e Charruas. Com a chegada da Companhia de Jesus e a fundação das Missões Jesuíticas, iniciou-se o processo de ocupação e organização social do território.

Para garantir o sustento dos indígenas convertidos, o Padre Jesuíta Cristóvão de Mendonça introduziu gado na região em 1634. Aproximadamente uma década depois, em 1641, a expulsão dos jesuítas pelos bandeirantes desencadeou um fenômeno que marcaria para sempre o ecossistema gaúcho: boa parte do gado das missões fugiu e se espalhou livremente pelo pampa.

Sem predadores naturais e adaptados ao clima rigoroso, à vegetação campestre e às barreiras naturais formadas pelos rios, esses animais se multiplicaram e formaram um enorme rebanho selvagem, resistente e perfeitamente ajustado ao ambiente. Nascia ali a raça xucra, mais tarde conhecida como Franqueiro, “Orelhano” ou “Chimarrão”.

Hoje, porém, essa raça — que serviu de base para tropeadas, abastecimento de povoados, formação de estâncias e até para a produção tradicional do queijo serrano — encontra-se em perigo de extinção.

Sebastião Oliveira, criador de gado franqueiro, recebe painel de Fernando Dias (à direita), da Seapi – Foto: divulgação/Seapi

Além de criador e presidente da ABCBF, Sebastião Fonseca é reconhecido como um preservador das tradições, do folclore e da memória histórica do Rio Grande do Sul. Poeta, declamador e autor, possui extensa obra musical e literária, com forte integração cultural com Uruguai e Argentina. Também se dedica à pesquisa documental sobre o povoamento das sesmarias serranas, tema de um de seus livros.

Com sua vida simples e dedicada ao campo, é descrito como “um gaúcho que vai se esvaindo deste Rio Grande velho, sem que haja reposição à altura”, numa referência tanto à figura humana quanto à raça que protege. Na solidão da Fazenda do Faxinal, em São Francisco de Paula, ele mantém viva uma linhagem que moldou gerações.

Na última segunda-feira (1º/12), Sebastião recebeu um gesto simbólico que reforça a importância de sua missão. O fotógrafo Fernando Kluwe Dias, da Secretaria da Agricultura, Pecuária, Produção Sustentável e Irrigação (Seapi), entregou ao criador um painel com a foto do gado franqueiro registrada no livro “Queijo Artesanal Serrano: identidade cultural nos Campos de Cima da Serra”.

Gado franqueiro na propriedade de Sebastião Oliveira, nos Campos de Cima da Serra – Foto: Fernando Dias/Ascom Seapi

O ato ocorreu na própria fazenda e contou com a presença de:

  • Saionara Wagner, professora da UFRGS e autora do livro;
  • João Carlos Santos da Luz, extensionista da Emater/RS-Ascar e coautor da obra;
  • Lilian Ceolin, extensionista da Emater e apoiadora do resgate histórico.

Para Sebastião, o painel simboliza reconhecimento, mas também alerta: “O franqueiro tem valor histórico e cultural. É igual a qualquer outro bovino em produção, mas carrega a origem de tudo. Não podemos deixá-lo desaparecer”.

A sobrevivência do franqueiro é importante não apenas por motivos sentimentais ou folclóricos, mas por razões genéticas, históricas e produtivas:

  • Adaptação extrema ao pampa: rusticidade, resistência ao frio, capacidade de prosperar em ambientes naturais sem grandes manejos.
  • Valor cultural: está ligado à formação do tropeirismo, da pecuária gaúcha e da identidade regional.
  • Base histórica do queijo serrano: seu leite era essencial para a produção tradicional que hoje é patrimônio imaterial.
  • Patrimônio genético único: representa uma linhagem construída ao longo de quase 400 anos.
Gado franqueiro nos Campos de Cima da Serra – Foto: Fernando Dias/Ascom Seapi

Ainda assim, o número de animais é muito reduzido e ameaçado pela substituição por raças mais comerciais, como Angus, Hereford e outras raças europeias.

A luta pela preservação do gado franqueiro passa por ações como registros oficiais, programas de conservação, incentivos regionais, divulgação científica e cultural, além do engajamento de universidades, entidades rurais e governos.

Mas, acima de tudo, depende de pessoas como Sebastião Fonseca de Oliveira, cuja dedicação faz com que um pedaço essencial da história dos gaúchos siga vivo — mesmo que em pequenos rebanhos soltos nos campos frios da Serra.

O franqueiro é, ao mesmo tempo, passado, presente e alerta: se não houver ações concretas agora, uma das mais antigas e autênticas linhagens bovinas do Brasil pode desaparecer para sempre.

Quer ficar por dentro do agronegócio brasileiro e receber as principais notícias do setor em primeira mão? Para isso é só entrar em nosso grupo do WhatsApp (clique aqui) ou Telegram (clique aqui). Você também pode assinar nosso feed pelo Google Notícias.

Siga o Compre Rural no Google News e acompanhe nossos destaques.
LEIA TAMBÉM