
O agricultor não deixa de pagar porque não quer; deixa de pagar porque, muitas vezes, enfrenta fatos supervenientes de caráter excepcional e imprevisível.
A inadimplência do produtor rural tem sido tratada, de forma reducionista, como mero descumprimento contratual. Essa visão ignora a realidade do campo e a própria lógica jurídica. O agricultor não deixa de pagar porque não quer; deixa de pagar porque, muitas vezes, enfrenta fatos supervenientes de caráter excepcional e imprevisível, como secas prolongadas, enchentes devastadoras, pragas, oscilações cambiais e bruscas quedas de preços no mercado internacional.
No plano jurídico, tais situações não configuram inadimplência voluntária, mas sim alteração da base objetiva do contrato, hipótese em que o próprio ordenamento prevê soluções. Uma das soluções encontra-se no artigo 478 do Código Civil, com a Teoria da Onerosidade Excessiva, que permite a revisão ou até a resolução do contrato quando o cumprimento da obrigação se torna desproporcional em razão de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis.
Esse instituto jurídico, que dialoga com a função social do contrato (artigos 421 e 421-A do Código Civil), é particularmente relevante para a agricultura, atividade marcada por riscos incontroláveis. O produtor rural não controla o clima, a volatilidade cambial ou o preço internacional da soja. Quando esses fatores desequilibram a equação contratual, é papel do direito restaurar a proporcionalidade.
Além disso, não se trata apenas de teoria. O próprio Manual de Crédito Rural (MCR), editado pelo Banco Central, prevê expressamente a prorrogação compulsória das dívidas em casos de frustração de safra ou dificuldades climáticas e mercadológicas. Ou seja, o arcabouço jurídico e normativo já reconhece a excepcionalidade da atividade rural e prevê mecanismos de ajuste.
O problema é que, na prática, bancos e cooperativas ignoram essas previsões e partem para a execução imediata, transformando o agricultor em inadimplente “culpado” por um fracasso que não lhe pertence. Frequentemente negam a prorrogação, exigem contrapartidas abusivas, empurram produtos financeiros paralelos e preferem a execução judicial. Assim, o produtor é tratado como devedor comum, quando a lei reconhece que sua atividade é excepcional e sujeita a fatores imprevisíveis.
O que está em jogo, portanto, não é apenas a situação financeira de um setor, mas a credibilidade do ordenamento jurídico. Se a lei existe, mas não é aplicada, abre-se espaço para a insegurança, para o estrangulamento da base produtiva e para a corrosão da confiança no crédito rural.
A consequência é perversa: em vez de contar com o respaldo do Estado e das instituições financeiras, o produtor rural vê seu maquinário penhorado, sua safra travada e sua dignidade produtiva destruída. Essa postura não apenas fere princípios jurídicos básicos, como compromete a própria sustentabilidade do agronegócio brasileiro. Afinal, não há cadeias produtivas sólidas sem produtores resilientes.
É preciso reconhecer: a inadimplência rural não pode ser analisada apenas pela ótica bancária. Trata-se, muitas vezes, de um caso clássico de fato superveniente excepcional e imprevisível, que juridicamente autoriza a revisão contratual. O agricultor não pede anistia nem privilégio, mas sim a aplicação coerente da lei.
Ao setor financeiro e ao governo cabe uma escolha: insistir na lógica de curto prazo, sufocando quem produz, ou aplicar os instrumentos legais existentes, assegurando que o crédito rural cumpra sua função. A resposta determinará não apenas a saúde econômica do campo, mas também a dignidade de milhares de agricultores que sustentam o país.
O produtor rural não pede privilégio. Pede apenas o cumprimento da lei. Se o Brasil deseja manter-se potência agroalimentar, precisa começar pelo básico: assegurar que o crédito rural cumpra sua função de fomento, e não de estrangulamento.
Autores:
Charlene de Ávila – Advogada. Mestre em Direito. Consultora Jurídica em propriedade intelectual na agricultura do Escritório Néri Perin Advogados Associados.
Néri Perin – Advogado Agrarista, especialista em Direito Tributário e em Direito Processual Civil pela UFP. Diretor Administrativo do Escritório Néri Perin Advogados Associados.
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ℹ️ Conteúdo publicado por Myllena Seifarth sob a supervisão do editor-chefe Thiago Pereira
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