Reflexão sobre embarque de gado vivo questiona “evidências”

Manifesto sobre as condições de bem-estar dos bovinos embarcados no “nada”: uma reflexão sobre os últimos acontecimentos durante a exportação de bovinos no porto de Santos.

Manifesto é do Grupo de Estudos e Pesquisas em Etologia e Ecologia Animal (GRUPO ETCO), da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias – UNESP, campus de Jaboticabal, confira.

Bem-estar animal é um conceito muito bem definido e reconhecido por autoridades sanitárias internacionais. Em 1986 o Prof. Donald Broom, da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, definiu bem-estar animal como “… o estado de um organismo nas suas tentativas de se ajustar ao seu ambiente…”. Esta definição foi ratificada e expandida em 2008 pela OIE, estabelecendo, em seu Código Sanitário para os Animais Terrestres que “… bem-estar animal corresponde a forma com que o animal se ajusta às condições nas quais ele vive…”.

Conforme a OIE “… um animal está em bom estado de bem-estar (como indicado por evidências científicas) se ele está saudável, confortável, bem nutrido, em segurança, capaz de expressar seus comportamentos inatos e se não está sofrendo de estados desagradáveis, como dor, medo e angústia…”. Ao final da apresentação de sua definição, a OIE reforça a proposta original de Donald Broom ao assumir que “… bem-estar animal se refere ao estado do animal; o tratamento que um animal recebe é coberto por outros termos, tais como cuidados com os animais, criação de animais e tratamento humanitário…” (a versão integral da definição da OIE está aqui).

Cabe lembrar que o Brasil é signatário deste código e, portanto, assume compromissos em respeitá-lo, como bem caracterizado na manifestação da Coordenação de Boas Práticas e Bem- estar Animal (CBPA) do Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento (MAPA), ao declarar que “… conhecer e aplicar as recomendações da OIE resguarda a agropecuária nacional, favorece a imagem dos produtores, gera credibilidade ao serviço veterinário oficial e beneficia diretamente os animais…” confira o manifesto completo aqui.

É com base nestes elementos, que passamos a analisar os recentes (e polêmicos) acontecimentos com a exportação de bovinos vivos (com a finalidade de engorda e abate no país de destino) através do porto de Santos, com foco na questão do bem-estar animal.

A polêmica situação desencadeada pela exportação de bovinos pelo porto de Santos

Recentemente assistimos por meio dos variados meios de comunicação ao embate jurídico entre as forças que defendem e as que condenam a exportação de animais vivos, resultante das denúncias de maus tratos aos bovinos com destino à Turquia. Para saber se as denúncias eram procedentes ou não, seria necessário realizar avaliações objetivas das condições de bem-estar dos bovinos em todas as etapas do processo, utilizando indicadores de bem-estar animal para avaliar em que condições foi realizado o transporte terrestre (incluindo ai, o tempo de espera desde a chegada dos caminhões no porto até o embarque no navio) e o embarque, além das condições de acomodação alimentação, sanidade e comportamento dos animais nas baias do navio (estando este atracado ou em movimento, rumo a seu destino final).

Segundo os documentos que vieram a conhecimento público, a única avaliação objetiva com foco no bem-estar animal que usou indicadores validados cientificamente (como recomendado pela OIE) foi realizada pela médica veterinária Magda Regina (CRMV-SP 7583), nomeada, pelo juiz responsável pela causa, para realizar a perícia. O relatório está fartamente documentado e ilustrado com fotos, evidenciando que as condições de alojamento e de fornecimento de água e alimentos eram inadequadas para assegurar o bom estado de bem-estar aos animais já embarcados no navio, como proposto pela OIE.

Foram destacados no relatório os seguintes pontos negativos: falhas na oferta de alimento e água, limitação de mobilidade e de espaço, más condições de higiene (como evidenciada pelo acúmulo de dejetos nas baias e sobre os corpos dos animais (em especial naqueles alojados em baias com alta densidade), severa poluição sonora e alta concentração de gases no ambiente. Com base nas suas constatações, a perita concluiu que:

“… são abundantes os indicativos que comprovam maus tratos e violação explícita da dignidade animal, além de ultrapassar critérios de razoabilidade elementar as cinco liberdades garantidoras do bem estar animal …”.

A Comissão Técnica de Bem-Esta Animal (CTBEA) do MAPA também se manifestou, emitindo a NOTA TÉCNICA No 1/2018/GAB-GM/MAPA, contestando a denúncia de que os animais estavam submetidos a maus tratos. Nesse documento a CTBEA sustenta que o MAPA, em função do trabalho realizado pelos Auditores Fiscais Federais Agropecuários, tem “… total domínio e acompanhamento, em todas as etapas das operações de exportação de animais vivos… O que implica, compulsoriamente, em realizar a verificação das práticas para a promoção e a manutenção das condições de bem-estar animal…”.

Entretanto, não apresenta nenhuma informação sobre como foi feita a avaliação do bem- estar dos animais durante o transporte terrestre e o embarque e nem sobre as condições do ambiente dentro do navio NADA. Além disso, foi enfatizado na Nota Técnica que a exportação de animais vivos (incluindo o caso em análise) está regulamentada por uma série de atos normativos, que estão alinhados aos preceitos de bem-estar animal estabelecidos pela OIE. Se assim for, algo precisa ser mudado urgentemente, pois não há como negar a existência de problemas de bem- estar dos bovinos que participaram desta operação de embarque do navio NADA. As evidências apresentadas no relatório da Médica Veterinária responsável pela perícia judicial são incontestáveis, caracterizando claramente haver desrespeito às recomendações da OIE.

Após leitura cuidadosa dos documentos e manifestos públicos relacionados a este caso, incluindo aqueles apresentados pela CTBEA/MAPA e pela empresa envolvida, não foi encontrada nenhuma contestação bem fundamentada às sólidas evidências apresentadas no relatório da Médica Veterinária responsável pela perícia, que caracterizam claro desrespeito às recomendações da OIE, no que diz respeito a bem-estar animal.

Algo precisa ser feito com urgência, não podemos ficar marcados por um mau exemplo. O Brasil, em particular o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento – MAPA, está devendo regulamentações claras e detalhadas sobre como tratar a questão do bem-estar dos animais de produção nos diferentes cenários (criação, transporte terrestre, transporte fluvial, transporte marítimo, abate, esporte, trabalho e etc.). Evidentemente, estas normatizações devem ser formuladas com base em evidências científicas, tal como recomendado por vários organismos internacionais, inclusive a OIE.

O Brasil é o celeiro mundial de proteína animal e, portanto, todos os envolvidos (em particular os agentes governamentais) deveriam preocupar-se com os impactos negativos que certos posicionamentos trazem para a imagem das cadeias produtivas da nossa pecuária. Apesar dos desafios que enfrentamos, a situação do Brasil em relação ao bem-estar dos animais de produção é, em geral, muito melhor do que o cenário evidenciado nos últimos acontecimentos no porto de Santos.

Entretanto, não há como negar que existem poucos regulamentos técnicos tratando da questão do bem-estar dos animais de produção em nosso país e que, na sua grande maioria, eles são vagos, imprecisos e extremamente incompletos, não oferecendo indicadores objetivos que permitam a avaliação prática do bem-estar animal de forma ampla e precisa.

Para finalizar, reafirmamos o nosso compromisso com a produção pecuária responsável, que, além de promover geração de renda, contribui para a manutenção de comunidades saudáveis, a preservação dos recursos naturais e a promoção do bem-estar de todos os envolvidos, humanos e animais. Há, em nosso país, muitos bons exemplos nas diversas cadeias produtivas da pecuária de que este equilíbrio pode ser alcançado, trazendo, inclusive, benefícios econômicos.

Mateus José Rodrigues Paranhos da Costa
Professor de Etologia e Bem-estar Animal
Departamento de Zootecnia, Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias, UNESP, Jaboticabal-SP

Confira o artigo original aqui e seus co-autores. 

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