A venda casada no crédito rural no CADE: será o fim da submissão financeira do produtor rural?

Órgão antitruste reconhece indícios de prática ilegal no crédito rural do Banco do Brasil, mas especialistas do escritório Néri Perin Advogados Associados alertam para os riscos de impunidade e morosidade no processo

Durante décadas, o produtor rural brasileiro foi submetido a uma relação desequilibrada com o sistema financeiro. Sob a promessa de acesso ao crédito rural, muitos saíam das agências bancárias com apólices de seguro, títulos de capitalização, consórcios ou outros produtos que jamais solicitaram. A prática, conhecida como venda casada, é proibida por lei, mas persistiu como um segredo a céu aberto nos corredores das instituições financeiras — com destaque para o maior operador de crédito rural do país: o Banco do Brasil.

Agora, o CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), finalmente, admite o que produtores, advogados e entidades representativas do agro denunciam há anos: há indícios consistentes de venda casada no crédito rural. Mais do que isso, o órgão reconheceu sua competência para investigar a conduta. Um movimento que muitos passaram a chamar de “marco histórico” para o setor. Mas será mesmo?

A omissão institucional como regra

Criado em 1962, o CADE tem a função de zelar pela livre concorrência e reprimir práticas abusivas. No entanto, por décadas ignorou denúncias evidentes de abuso de poder econômico por parte de instituições financeiras. Como observam advogados do setor, inclusive ex-funcionários do próprio Banco do Brasil confirmam que a prática é antiga e recorrente — muito longe de um caso pontual ou isolado.

O que se vê, segundo a advogada Charlene de Ávila, mestre em Direito e consultora jurídica em Propriedade Intelectual na Agricultura, do escritório Néri Perin Advogados Associados, é uma tentativa de celebrar o óbvio: “Tratar como ‘marco histórico’ o fato de o CADE cumprir sua obrigação é uma confissão constrangedora de que rebaixamos tanto as expectativas sobre as instituições que qualquer gesto básico de funcionalidade parece um avanço.”

O roteiro da impunidade

A abertura de inquérito, sozinha, não representa garantia de mudança estrutural, alerta Néri Perin, advogado agrarista, especialista em Direito Tributário e em Direito Processual Civil pela UFP, e diretor administrativo do Néri Perin Advogados Associados. Ele e outros analistas acreditam que o mais provável é que a investigação se arraste por anos, enfrentando manobras protelatórias, pressões políticas e acordos brandos que não atingem o cerne do problema.

A previsão é de um desfecho já conhecido em processos dessa natureza: um Termo de Compromisso de Cessação (TCC) com promessas de “ajustes de conduta” e uma multa irrisória frente ao faturamento bilionário da instituição. Nada que devolva automaticamente os valores indevidamente pagos pelos produtores. Nada que impeça o banco de seguir com a mesma prática sob outros nomes.

Um jogo de forças políticas

O Banco do Brasil, enquanto gigante do crédito rural, possui uma poderosa rede de influência. A expectativa, segundo especialistas, é que o banco mobilize seu capital político para atenuar os efeitos do inquérito: “Parlamentares serão convencidos de que a investigação ameaça o crédito rural. Ministros receberão pressões por ‘segurança jurídica’. O Banco Central vai falar em ‘estabilidade do sistema’”, comenta Charlene.

E assim, aos poucos, o caso pode ser esvaziado. A venda casada será tratada como ‘interpretação equivocada de procedimento comercial’. O foco deixará de ser o produtor lesado e passará a ser a preservação da imagem institucional.

O produtor como refém

Enquanto o processo corre, o produtor rural segue sem proteção efetiva. Muitos continuam aceitando produtos que não desejam, por medo de perder o financiamento da safra. O medo de retaliação é real, e a ausência de canais de denúncia confiáveis aprofunda o silêncio.

Esse sistema de dependência e submissão se enraizou de tal forma que o produtor muitas vezes não vê alternativa: engole o abuso porque precisa plantar, colhe endividamento e se cala por desconfiança nas instituições.

Um teste para o Brasil

A abertura do inquérito pelo CADE não é uma vitória, afirmam os especialistas — é um teste. Um teste para saber se o Brasil, enfim, terá instituições que funcionam, ou se seguirá refém de uma cultura regulatória que simula investigações para preservar privilégios.

A verdadeira mudança só virá se houver:

  • Pressão contínua da sociedade e da imprensa
  • Mobilização de entidades representativas do agro
  • Judicialização com foco em ressarcimento e responsabilização
  • Custo político para quem tentar proteger práticas abusivas

Se nada disso acontecer, o inquérito do CADE será apenas mais uma peça no teatro da impunidade institucional brasileira.

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