Aumento de recuperações judiciais tem sido associado a um uso ‘predatório’ do instrumento

Mesmo com produção e exportações em alta, o agronegócio registra aumento expressivo nas solicitações de recuperações judiciais — especialistas apontam crise de liquidez, má gestão financeira e uso “predatório” do instrumento como causas

O agronegócio brasileiro, responsável por cerca de um quarto do PIB nacional e por bater recordes de produtividade e exportação ano após ano, enfrenta um paradoxo preocupante: o aumento constante nos pedidos de Recuperação Judicial (RJ). Segundo dados da Serasa Experian, foram 2.273 solicitações em 2024, o que representa alta de 61,8% em relação a 2023. E o cenário não melhora em 2025 — só no primeiro trimestre, o setor já registrou 565 pedidos de recuperações judiciais, 31,7% acima do mesmo período do ano anterior.

O paradoxo do agro: recorde de safra, recorde de dívidas

A contradição entre safras históricas e endividamento crescente foi tema central do AgroLegal Summit, realizado em São Paulo pela Associação dos Advogados de São Paulo (AASP). Durante o evento, José Roberto Camasmie Assad, membro da Comissão de Direito do Agronegócio do Ibrademp, destacou que o financiamento privado já supera R$ 1 trilhão, enquanto o Plano Safra 2025/26 oferece R$ 516 bilhões em crédito subsidiado.

“O agro deixou de depender apenas de subsídios estatais e passou a se financiar majoritariamente via mercado privado. O problema é que, sem instrumentos de prevenção e renegociação eficientes, o aumento das RJs se torna inevitável”, explicou Assad.

Ele reforça que a renegociação direta entre credores e produtores é o caminho menos danoso, evitando o desgaste e os custos de uma ação judicial. “Tratar o problema na origem é a única forma de evitar o colapso financeiro antes que ele se materialize em um pedido de recuperação”, completou.

Crise de liquidez e fatores externos

A advogada Caroline Vallerio Oliveira, especialista em resolução de conflitos, aponta uma crise de liquidez no campo, provocada por um conjunto de fatores. “Juros altos, tarifas internacionais, oscilações climáticas e geopolíticas, além do aumento nos custos de transporte e insumos, estão pressionando as margens de lucro e comprometendo a capacidade de pagamento do produtor rural”, explicou.

Ela ressalta que o ideal é contar com equipes jurídicas especializadas em negociação, capazes de dialogar tecnicamente com bancos, tradings e credores, inclusive dentro do processo judicial, para viabilizar acordos e evitar a falência.

Abuso e distorção no uso das recuperações judiciais

No mesmo evento, a advogada Tamara Bardi alertou para o uso abusivo do mecanismo de recuperação judicial no agro, fenômeno que o Ministério da Fazenda já observa com preocupação. Segundo ela, há casos de “recuperações predatórias”, com planos inviáveis, deságios excessivos, prazos longos e carências desproporcionais, que chegam a ultrapassar dez anos de pagamento.

“Muitos produtores estão se valendo das recuperações judiciais não como medida de reestruturação legítima, mas como uma forma de ganhar tempo e se proteger de credores de boa-fé. Isso desvirtua a função do instrumento e prejudica todo o ecossistema do crédito agrícola”, afirmou Bardi.

Ela defende o uso da recuperação extrajudicial, modelo mais simples e menos oneroso, no qual o devedor negocia com seus principais credores e apenas homologa o plano em juízo — reduzindo custos e prazos processuais.

A importância da prevenção e do planejamento

Especialistas convergem em um ponto: a prevenção é a chave. A falta de planejamento financeiro, combinada a oscilações de preços e atrasos de safra, tem levado produtores a um endividamento estrutural. “O produtor precisa compreender que o risco de mercado faz parte da atividade, e o sucesso depende de gestão eficiente e de mecanismos jurídicos de proteção”, resume Assad.

Além disso, a ausência de varas especializadas fora dos grandes centros, como São Paulo, aumenta a complexidade dos processos de recuperações judiciais, dificultando a análise técnica e a celeridade nas decisões.

De forma resumida, mesmo com safras recordes e exportações bilionárias, o agronegócio brasileiro convive com um crescimento preocupante dos pedidos de Recuperação Judicial, revelando um setor que, embora pujante, ainda enfrenta desafios profundos de gestão e crédito. O debate sobre o tema é urgente: sem equilíbrio entre produção, financiamento e responsabilidade jurídica, o campo corre o risco de produzir muito — mas lucrar pouco.

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