
Isoladas no arquipélago de Abrolhos desde o período colonial, cabras desenvolveram resistência única à escassez hídrica e agora podem ajudar o semiárido brasileiro
Durante mais de dois séculos, um pequeno rebanho de cabras desafiou os limites da sobrevivência em condições extremas. Isolados na Ilha de Santa Bárbara, no arquipélago de Abrolhos, no extremo sul da Bahia, esses animais viveram sem acesso a fontes de água doce, adaptando-se de forma surpreendente a um ambiente hostil. Hoje, esse patrimônio genético raro se tornou alvo de pesquisas da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb) e da Embrapa, com potencial de transformar a caprinocultura no semiárido brasileiro.
A presença das cabras na ilha remonta ao período colonial, quando navegadores deixaram animais em pontos estratégicos como recurso de subsistência em longas expedições. Registros históricos confirmam essa permanência: em 1832, o naturalista Charles Darwin registrou em suas anotações a passagem pelo arquipélago de Abrolhos e observou a presença desses caprinos. Desde então, eles permaneceram isolados, formando um rebanho que atravessou gerações sem contato com o continente.
Retirada das cabras de Abrolhos e impacto ambiental
Em março de 2025, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) concluiu a retirada dos animais da ilha. O objetivo foi restaurar a vegetação nativa e proteger sete espécies de aves marinhas que se reproduzem em Abrolhos — entre elas a grazina-do-bico-vermelho, considerada ameaçada de extinção e cuja maior colônia está justamente no arquipélago. A presença de espécies exóticas, como cabras e roedores, havia se tornado uma ameaça direta ao ecossistema, danificando ovos e competindo por recursos.
Tesouro genético sob análise
Após a remoção, 21 cabras desembarcaram em Itapetinga (BA), onde passaram por quarentena e agora são estudadas pela Uesb. O professor Ronaldo Vasconcelos, zootecnista responsável pelo projeto, explica que o trabalho consiste em uma caracterização morfológica minuciosa: são avaliados perfil cranial, estrutura corporal, variações de pelagem e chifres, úbere, altura e até o tamanho da cauda. “Cada detalhe é medido milimetricamente para verificar se há padrão que caracterize uma nova raça”, destacou o pesquisador.
Segundo Vasconcelos, uma das principais preocupações é formar grupos de reprodução que evitem a consanguinidade, preservando a diversidade genética acumulada ao longo dos séculos. Ainda não há confirmação de que se trata de uma nova raça, mas a diversidade de características físicas e a resistência à escassez hídrica já chamam atenção da ciência.
Pequeno porte, alta fertilidade e habilidade materna
Outro aspecto observado foi o porte reduzido dos animais, possivelmente resultado da limitação de recursos e da competição alimentar constante na ilha. Apesar disso, a capacidade reprodutiva surpreendeu: muitas fêmeas chegaram prenhas e, mesmo após o estresse do transporte, pariram filhotes gêmeos com sucesso. Além disso, apresentaram uma habilidade materna incomum, não abandonando as crias nem interrompendo a lactação durante o processo de captura e adaptação.
Futuro: ciência e sertão de mãos dadas
A pesquisa em andamento busca não apenas entender a adaptação biológica das cabras de Abrolhos, mas também aproveitar essa genética rara em benefício da pecuária nordestina. A proposta é armazenar material genético — como sêmen e embriões — e disponibilizar de forma controlada para criadores da região semiárida, onde a falta de água e as mudanças climáticas representam desafios crescentes.
“Esses genes podem tornar os animais mais resistentes, o que é valioso especialmente para as pequenas propriedades, onde a criação de cabras representa a principal fonte de proteína e renda”, reforça um professor de zootecnia da Uesb.
Legado de sobrevivência
Mais do que uma curiosidade científica, a história das cabras de Abrolhos é um retrato da capacidade de adaptação da vida. O que antes serviu como recurso de sobrevivência para navegadores, hoje pode se transformar em esperança para milhares de famílias no sertão, mostrando que até nos ambientes mais inóspitos a natureza encontra caminhos para resistir.
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