Carrapato causa perdas de bilhões aos fazendeiros do Rio Grande do Sul

O ácaro que suga o sangue dos bovinos, e nas últimas décadas, passou a configurar um problema insolúvel para a pecuária gaúcha

Nos primeiros meses do governo de José Ivo Sartori (PMDB), em 2015, uma comitiva de entidades rurais, liderada pela Federação da Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul (Farsul), foi ao Palácio Piratini reclamar providências enérgicas e definitivas contra o carrapato, o ácaro que suga o sangue dos bovinos e, nas duas últimas décadas, passou a configurar um problema insolúvel para a pecuária gaúcha. A contabilidade dos prejuízos é impressionante.

Num experimento realizado na temporada de primavera-verão de 2012 no pampa de São Gabriel, com dois lotes de 40 bovinos da raça angus, constatou-se que, após 26 semanas de pastejo em campo nativo, o grupo livre de carrapato ganhou, em média, 110 quilos por cabeça, enquanto o lote carrapateado não passou de 70 quilos por cabeça.

Os números desse experimento, realizado pela Fundação de Pesquisa Agropecuária do Rio Grande do Sul (Fepagro), extrapolados para o rebanho nacional, indicam que o carrapato provocaria uma perda anual de 1,7 milhão de toneladas de carne bovina, o equivalente a US$ 2,78 bilhões. Na produção de leite, segundo cálculos feitos na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, o ácaro vampiro sugaria o equivalente a US$ 912 milhões por ano.

Menos mal se o problema se limitasse à ação sugadora do Rhipicephalus (Boophilus) microplus, nome científico do bichinho. Além de depreciar o couro dos animais, o carrapato é um dos vetores da tristeza parasitária bovina (TPB), doença apontada como a principal causa de 180 mil mortes por ano de bovinos no Rio Grande, cujo rebanho oscila entre 14 milhões e 15 milhões de cabeças.

Diante desses números, não é difícil compreender porque, entre as reivindicações dos criadores que foram ao Piratini, estava o pedido para que a Fepagro retomasse a produção de insumos veterinários para a prevenção da TPB. As “vacinas”, que serviam para imunizar cerca de 300 mil cabeças de gado por ano, deixaram de ser produzidas em 2011, colocando os criadores na dependência do solitário Hemopar, um pequeno laboratório particular, fundado em 1990, em Livramento (RS). Fora daí, a alternativa é recorrer a importações.

Cientista trabalha sobre amostras da praga no Instituto de Pesquisas Veterinárias Desidério Finamor. Foto: MARCELO CURIA

Plano no papel

Encurralado por um déficit histórico, só pensando em cortar despesas, o governo gaúcho limitou-se a criar um grupo de trabalho que, por falta de recursos, pouco opera. Mais no papel do que na prática, foi implantado um programa estadual de combate ao carrapato, com a participação de 20 técnicos de várias instituições do Estado, entre elas a polivalente Embrapa Pecuária Sul, de Bagé.

Porém, no final de 2016, surpreendentemente, a Assembleia Legislativa aprovou o projeto (originário do Executivo) que extinguiu oito fundações (1.200 funcionários), entre elas a centenária Fepagro, hospedeira do Instituto de Pesquisas Veterinárias (IPV), que tem como patrono um dos primeiros veterinários formados no Estado. Nascido em 1899, em Santiago, no pampa profundo, Desidério Finamor formou-se tarde (1926) e morreu cedo (1949), poucos anos depois de organizar o instituto (1942) e se tornar secretário da Agricultura (1945-1947).

A extinção da Fepagro foi uma medida de emergência que se revelou contraditória: como não pode ser demitido, por ter estabilidade funcional, o pessoal não aposentável foi lotado na Secretaria da Agricultura, que organizou um departamento de diagnóstico e pesquisa sem boas condições de trabalho no momento. O IPV será mantido, mas os técnicos responsáveis pelo combate ao carrapato andaram até se cotizando para comprar o nitrogênio necessário à conservação do material – sangue de bovinos infectados – usado na pré-imunização do gado contra a tristeza. Cada litro de nitrogênio custa R$ 13.

Larvas do carrapato agarradas ao pasto. Foto: MARCELO CURIA

Na mesma época em que o IPV Desidério Finamor parou de fazer suas “vacinas”, a Embrapa Pecuária Sul começou, em Bagé, uma pesquisa para desenvolver uma vacina de verdade contra a tristeza transmitida pelo carrapato. “Não deu certo”, admite a veterinária Emanuelle Gaspar, que espera retomar seus esforços em 2018, com novos recursos orçamentários. Porém, ela reconhece que a vacina contra a TPB é tão difícil de obter quanto a da malária (ainda não descoberta). A vantagem é que a tristeza bovina é curável se for detectada logo no começo.

Os sintomas são notórios, explica o fazendeiro veterinário Gedeão Pereira, criador de gado em Bagé: de repente, o animal para de pastar, pende a cabeça, se isola do rebanho, encolhe o vazio do estômago e passa a urinar sangue. Se não for tratado, morre em uma semana ou menos. Sem vacina, a única saída é combater eficientemente o vetor principal – o carrapato bovino –, mantendo a infestação em níveis baixos para minimizar os custos do controle. É o que fazem criadores como Gedeão Pereira, apontado como vitorioso nas guerras sanitárias da pecuária gaúcha.

Além de enfraquecer o gado, tornando-o vulnerável a outros problemas sanitários como as bicheiras e os abortos, o carrapato atua como um sócio desmancha-prazeres que aparece de surpresa em momentos inesperados. “Apliquei carrapaticida e marquei a visita do comprador de gado para dali a três dias”, conta Euclides Pinto, pequeno criador em Caçapava do Sul. O representante do frigorífico chegou cedo e com pressa. Vistoriou os animais separados para a venda e os dispensou contrariado, após constatar que o gado ainda estava carrapateado. “Passei vergonha”, lembra Euclides, que se dispõe a arrendar seus 190 hectares a um plantador de eucaliptos.

Episódios dessa natureza mostram que o problema do carrapato adquiriu uma dimensão complexa. Para criadores mais ou menos isolados no campo, é quase uma charada. Sendo mais suscetível ao carrapato do que o (quase imune) gado azebuado da maior parte do Brasil, o rebanho sulino, de genética predominantemente europeia, precisa ser submetido a uma vigilância especial a partir de setembro, quando os ácaros voltam a atacar após a inatividade do inverno (abaixo de 15º C, eles não oferecem perigo). O outro lado do problema é que os carrapatos do Sul se tornaram resistentes aos acaricidas. “O Rio Grande do Sul é o local no mundo com mais casos de resistência aos carrapaticidas”, diz o veterinário José Reck Junior, de 34 anos, pesquisador do IPV Desidério Finamor.

Combate de 100 anos

O combate químico aos carrapatos começou há cerca de 100 anos. Data de 1920 o registro de aplicação do primeiro carrapaticida no Brasil. A contar do início do século XX, os Estados Unidos levaram mais de 40 anos para controlar o problema. Diante do aumento da resistência natural dos ácaros e da aplicação inadequada nas fazendas, a indústria farmacêutica foi mudando periodicamente as formulações de seus produtos, culminando, em 2000, com o esgotamento das bases químicas disponíveis – todas com registro de resistência, fenômeno no qual o Brasil é tetracampeão e o Rio Grande do Sul penta.

Similar à perda de eficácia dos antibióticos humanos, a falha dos carrapaticidas gera desconfiança nos fazendeiros, que erram por conta própria, ao exagerar nas doses, ou por recomendação dos balconistas de lojas agropecuárias, a quem o carrapato garante bons negócios. Certos carrapaticidas custam R$ 120 por litro, o que pode elevar cada aplicação a R$ 5 por cabeça. Além de equipamentos e instalações adequadas, o tratamento requer pessoal treinado e de boa vontade.

“Ainda não há melhor tratamento do que o banho de imersão dos animais em calda carrapaticida”, afirma o fazendeiro e veterinário Gedeão Pereira, que se declara livre do carrapato, mas continua submetendo seus animais (bovinos hereford puros) a três banhos sucessivos, um a cada 21 dias, na entrada da primavera, bloqueando qualquer possibilidade de infestação. Em seu protocolo anti-TPB, Gedeão estabeleceu atenção prioritária aos animais comprados fora: antes de ser colocado a pastar, o gado forasteiro deve passar pelo banheiro e ficar pelo menos uma semana na mangueira, comendo no cocho, até que esteja livre dos parasitas. Se viajaram junto com os animais, os carrapatos ficam no chão do confinamento e morrem numa mescla de areia, esterco e urina.

O Instituto de Pesquisas Veterinárias Desidério Finamor, onde se desenvolvem as pesquisas. Foto: MARCELO CURIA

Ciclo do bicho

O pior da história é que a maioria dos fazendeiros e técnicos conhece o ciclo do bichinho. Ele se enche de sangue durante cerca de 21 dias no corpo dos animais até cair ao solo, onde uma fêmea põe até 3 mil ovos. A vida livre no chão dura de 30 a 70 dias. Com temperatura favorável (acima de 15 ºC), as larvas – do tamanho da cabeça de um alfinete – se agarram aos bovinos e recomeçam o ciclo de vida como parasitas. Após a trégua do inverno, os carrapatos produzem três gerações sucessivas. A da primavera é “fraca”; a do verão, mais ou menos forte; no outono, a proliferação é intensa. Por isso é preciso dar-lhes o tríplice banho da primavera e manter a vigilância.

Por Texto: Geraldo Hasse, De Eldorado Do Sul (Rs)
Fotos: Marcelo Curia
Fonte: Globo Rural.

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