Como facções criminosas usam o agronegócio para lavagem de dinheiro

Investigações da Polícia Federal e dados do COAF revelam como o PCC e outras facções usam a compra de gado, fazendas e o mercado de defensivos para ‘esquentar’ bilhões do tráfico, ameaçando o setor com violência e concorrência desleal

O agronegócio, motor de quase um quarto do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro, celebra safras recorde. Contudo, nos bastidores desse império de produtividade, uma operação sombria está em curso. Longe das favelas do Rio ou das periferias de São Paulo, o crime organizado “atravessou a porteira” e encontrou no campo o ambiente perfeito para sua mais crucial operação financeira: transformar bilhões de reais do narcotráfico em ativos limpos.

Investigações da Polícia Federal, Ministérios Públicos e relatórios de inteligência financeira mostram que facções como o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV) não estão apenas usando as rotas do agro para exportar drogas; estão usando a própria estrutura do setor para lavar os lucros. O desafio das autoridades não é mais apenas parar o crime na fronteira, mas encontrá-lo no livro-caixa de uma fazenda.

O alarme: Um salto de 766% em operações suspeitas

O primeiro indício da infiltração não vem do cheiro de pólvora, mas do rastro digital do dinheiro. Dados do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) são alarmantes. O número de comunicações de operações suspeitas (COS) enviadas ao órgão saltou de cerca de 296 mil em 2015 para mais de 2,5 milhões em 2024 — um aumento de 766%.

Embora esse número englobe todos os setores, especialistas em combate à lavagem de dinheiro apontam que essa explosão reflete a sofisticação crescente das organizações criminosas, que migram para setores de alta liquidez e difícil fiscalização. O agronegócio, que movimenta trilhões por ano, é o alvo ideal. A lavagem de dinheiro no Brasil, como um todo, já causa um prejuízo estimado em R$ 200 bilhões por ano à economia.

A Tríade da Lavagem de Dinheiro no Agronegócio

Para “limpar” o dinheiro sujo, as facções exploram vulnerabilidades clássicas do setor rural através de uma tríade de métodos:

1. O Ativo Real (Terra e Fazendas) A forma mais direta é a aquisição de propriedades rurais. Como revelado em operações e na apuração da Gazeta do Povo, os grupos usam “laranjas” para comprar fazendas. Em muitos casos, a compra é forçada. A Operação Carbono Oculto, por exemplo, revelou um esquema onde o PCC estaria provocando incêndios criminosos em fazendas no Mato Grosso do Sul para forçar a venda das terras por valores abaixo do mercado, causando prejuízos de R$ 1 bilhão. Uma vez adquirida, a fazenda torna-se um ativo de valorização estável e de difícil rastreio.

2. O Ativo Móvel (Gado e Cavalos) Este é o método mais clássico e eficaz. O gado é, para o lavador de dinheiro, o ativo perfeito: é móvel, seu valor flutua e sua contagem é complexa. Em uma operação em Minas Gerais que bloqueou R$ 848 milhões de traficantes, descobriu-se que o grupo possuía mais de 4.000 cabeças de gado em apenas uma propriedade.

O esquema é simples:

  • A facção compra 1.000 cabeças de gado com dinheiro vivo (ilícito).
  • No papel, declara o nascimento “milagroso” de 500 novos bezerros (que não existem) ou superfatura o peso do gado vendido ao frigorífico.
  • O dinheiro que entra na conta como “lucro” da venda desse “gado de papel” está agora limpo, justificado como receita da pecuária.
  • Investigações também já flagraram o PCC usando cavalos de raça milionários, adquirindo animais por R$ 3 milhões em haras de luxo para “esquentar” o capital.

3. A Fachada Operacional (Insumos e Logística) A forma mais sofisticada de infiltração é o controle de empresas que servem ao agro. A Gazeta do Povo cita a descoberta de uma rede ligada ao PCC em Franca (SP) que dominava a distribuição de defensivos agrícolas ilegais. Este mercado, que movimenta R$ 20 bilhões anuais e representa 25% de todos os defensivos vendidos no país, é um ralo para o dinheiro sujo. A facção cria uma empresa de “Insumos Agrícolas”, mistura produto legal com ilegal, e justifica a entrada de milhões em sua contabilidade como “lucro operacional”.

A ‘Rota Caipira’ e a dupla função da fazenda

A Operação Rota Caipira, deflagrada pela Polícia Federal, expôs a simbiose entre o tráfico e a agropecuária. A investigação, que mirava o transporte de cocaína da Bolívia e Peru para o Brasil, descobriu que o esquema dependia de aeronaves que pousavam em pistas clandestinas dentro de fazendas.

A Justiça determinou o sequestro de três dessas propriedades rurais e o bloqueio de R$ 300 milhões. A investigação revelou a dupla função da fazenda:

  1. Função Logística (Tráfico): Servia como base segura para pouso, descarga e reabastecimento das aeronaves carregadas de cocaína.
  2. Função Contábil (Lavagem): As empresas de fachada ligadas aos traficantes eram usadas para “pagar” pela manutenção das aeronaves, combustível e serviços, disfarçando o dinheiro do tráfico como “custo operacional” da própria fazenda.

Violência e concorrência desleal

A infiltração do crime organizado no agronegócio não é passiva. Ela traz consigo um rastro de violência e distorção econômica. O produtor rural legítimo, que opera dentro da lei, de repente se vê obrigado a competir com um “vizinho” que não se importa com o lucro.

Esse “narco-pecuarista” pode pagar valores absurdos pelo arrendamento ou compra de terras, inflando artificialmente o mercado imobiliário rural. Ele pode vender seus produtos (grãos ou carne) por um preço mais baixo, pois seu “lucro” principal não vem da atividade, e sim da lavagem.

Mais grave, como aponta o caso da Operação Carbono Oculto, a facção usa a violência e a ameaça—métodos importados da sua atuação urbana—para consolidar seu domínio territorial no campo.

O desafio das autoridades é colossal. Em um setor definido pela vastidão e por transações de alto volume, separar o joio legítimo do trigo criminoso exige uma revolução na inteligência financeira e no rastreamento de ativos. O motor do Brasil não pode se tornar, por negligência, o caixa-forte do crime.

Escrito por Compre Rural

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ℹ️ Conteúdo publicado pela estagiária Ana Gusmão sob a supervisão do editor-chefe Thiago Pereira

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