
População de gado viveu isolada e selvagem por mais de um século; o rebanho enfrentou ventos fortes, falta d’água e um ecossistema hostil, e mesmo assim prosperou. Conheça o mistério das vacas da Ilha de Amsterdã.
Por mais de 130 anos, um rebanho bovino sobreviveu isolado em um dos locais mais remotos e inóspitos do planeta: a Ilha de Amsterdã, um pequeno território francês no sul do Oceano Índico, a 4.440 km de Madagascar. O que começou como um suposto experimento, ou talvez apenas abandono, tornou-se um dos mais raros e fascinantes casos de uma espécie bovina que se torna feroz/selvagem (se é que podemos dizer dessa forma) já registrados. Conheça o mistério das vacas da Ilha de Amsterdã.
A adaptação dessas vacas às condições extremas da ilha intrigou pesquisadores por décadas — até que, em 2010, a população foi erradicada pelas autoridades ambientais, levantando uma série de questionamentos sobre os limites da intervenção humana na natureza.
A Ilha de Amsterdã, com aproximadamente 55 km² (área semelhante à ilha francesa de Noirmoutier), integra o território das Terras Austrais e Antárticas Francesas (TAAF). O local possui um clima oceânico temperado, marcado por chuvas frequentes, ventos fortes e ausência de cursos de água permanentes — um ambiente considerado pouco propício à sobrevivência de grandes mamíferos terrestres como bovinos.
A presença humana só foi estabelecida oficialmente a partir de 1949, com a criação de uma base científica, e, em 2006, a ilha foi reconhecida como parte da Reserva Natural Nacional das TAAF, posteriormente alçada a Patrimônio Mundial da UNESCO pela sua biodiversidade única.
No entanto, registros indicam que o gado foi introduzido muito antes disso, provavelmente no final do século XIX, por navegadores ou exploradores franceses. Os animais, deixados à própria sorte, deram origem a uma população que chegou a 2.000 indivíduos em poucas décadas — vivendo sem manejo humano, sem suplementação alimentar e sem proteção contra intempéries.

O caso chamou atenção da comunidade científica não apenas por seu ineditismo, mas pelos impactos genéticos e ecológicos da adaptação desses animais. Pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisa Agrícola da França (INRAE), da Universidade de Liège e da LPO (Liga de Proteção dos Pássaros) realizaram duas expedições científicas à ilha, em 1992 e 2006, coletando amostras genéticas de 18 vacas.
A análise revelou que a população bovina da ilha apresentava marcas genômicas únicas, resultado de mais de um século de isolamento e adaptação natural — um processo de “evolução acelerada” rara em espécies originalmente domesticadas. Os animais apresentavam traços de resiliência física, resistência climática e estratégias alimentares alternativas, capazes de garantir sua sobrevivência em um território com vegetação limitada.
Segundo os pesquisadores Laurence Flori, Mathieu Gautier, Tom Druet, François Colas e Thierry Micol, o rebanho feral se tornou um modelo de estudo sobre plasticidade fenotípica e adaptação genética em situações extremas — um verdadeiro laboratório vivo a céu aberto.
Apesar do valor científico, o rebanho foi considerado uma ameaça à biodiversidade nativa da ilha, especialmente às espécies vegetais endêmicas e aves marinhas que nidificam no solo. Por esse motivo, em 2010, as autoridades ambientais decidiram erradicar completamente o rebanho, com base em recomendações de preservação ecológica da UNESCO e da administração das TAAF.

O abate gerou críticas e controvérsias entre ambientalistas e geneticistas. Para alguns, a ação foi necessária para proteger o ecossistema original. Para outros, tratou-se de uma perda irreparável de um patrimônio genético raro, cuja trajetória poderia oferecer novas respostas sobre resiliência animal, seleção natural e coevolução com o meio ambiente.
A história das vacas da Ilha de Amsterdã continua a provocar reflexões profundas sobre os limites entre conservação ambiental, ciência e ética. O caso levanta questões essenciais:
- Devemos preservar apenas o que é nativo ou também aquilo que se adaptou ao meio ao longo do tempo?
- Qual o valor científico de populações domesticadas que retornam à vida selvagem?
- É ético eliminar uma espécie animal apenas por não fazer parte da fauna original de um bioma?
Com a extinção completa do rebanho em 2010, restam apenas os registros científicos e os dados genéticos, hoje considerados valiosas peças de pesquisa evolutiva. As vacas da Ilha de Amsterdã não apenas sobreviveram — elas desafiaram os conceitos tradicionais sobre natureza e domesticação.
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