Conheça o “pai do sertanejo”, o homem que transformou a vida rural em música

Muito antes das arenas de rodeio e do sertanejo, um jornalista e folclorista visionário desafiou a elite urbana e as gravadoras para registrar, pela primeira vez, a autêntica música caipira. Conheça a história do homem que deu voz ao Brasil rural

Em 1928, a música que dominava as rádios e os gramofones das capitais brasileiras era o samba, o choro e as valsas. A vida no campo, com suas violas, seus “causos” e sua melancolia particular, era vista pela elite urbana como um sinônimo de atraso, algo “jeca” ou “capiau”, indigno de ser gravado.

A música do homem do campo existia, pulsava forte nas fazendas, nos terreiros e nas festas de colheita, mas era restrita ao seu próprio universo. Ela era transmitida oralmente, de pai para filho, sem registro formal.

Foi preciso um homem, que não era músico, mas sim um jornalista, escritor e folclorista, para mudar esse cenário para sempre. Seu nome: Cornélio Pires. Considerado por unanimidade o “Pai do Sertanejo”, foi ele o responsável por provar que a alma do interior paulista, mineiro e de todo o Brasil rural tinha valor cultural e, crucialmente, comercial. Siga a leitura e acompanhe o Compre Rural, aqui você encontra informação de qualidade para fortalecer o campo.

O visionário que viu ouro na roça

Nascido em Tietê (SP) em 1884, Cornélio Pires era um intelectual. Ele circulava pelos cafés de São Paulo, era amigo de Monteiro Lobato e de Tarsila do Amaral, mas sua verdadeira paixão era a cultura popular do interior. Ele viajava extensivamente pela “alta paulista” e pelo interior do Brasil, não como um turista, mas como um etnógrafo dedicado.

Sua missão ia muito além da música. Pires documentava meticulosamente o folclore, o linguajar (o dialeto caipira), as crenças, as receitas e as histórias que ouvira desde criança. Ele entendia que aquele modo de vida, diante da urbanização crescente, estava ameaçado de desaparecer.

Para Pires, o “homem do campo” não era uma figura atrasada, mas sim o guardião da verdadeira identidade brasileira. E a maior expressão dessa identidade era a música. No entanto, quando ele teve a ideia de levar esses artistas rurais, com suas violas e sanfonas, para um estúdio de gravação, a resposta foi unânime: “Não”.

A batalha contra o preconceito

No final da década de 1920, Cornélio Pires bateu na porta de todas as grandes gravadoras da época, como a Columbia e a Victor. Ele levava consigo uma trupe de artistas caipiras que havia selecionado em suas viagens.

A resposta que ouviu foi zombeteira. Os executivos das gravadoras não viam sentido em gastar dinheiro com “música de capiau”. Disseram que aquilo “não vendia” e que o público urbano jamais compraria discos com “aqueles lamentos”. O preconceito era claro: a música caipira era vista como um produto cultural inferior.

Conheça o “pai do sertanejo”, o homem que transformou a vida rural em música
Cornélio Pires — Foto: Acervo/Pedro Massa/Instituto Cornélio Pires

O financiamento do próprio bolso

Cornélio Pires não desistiu. Convencido do potencial daquele som autêntico, ele fez o impensável: financiou a gravação do próprio bolso. Em um ato de teimosia visionária, ele alugou os estúdios da Columbia, em São Paulo, e pagou pela prensagem dos primeiros discos. Em 1928 (com lançamento massivo em 1929), nascia o selo “Série Caipira Cornélio Pires”.

O primeiro disco gravado trazia de um lado “Jorginho do Sertão” (uma moda de viola) e do outro “Desafio”, ambos interpretados pela dupla Mariano e Caçula. O disco vinha com um selo distinto que dizia “Gravação de Cenas Sertanejas”. O resultado? Um sucesso estrondoso e imediato.

Os discos, que Cornélio Pires inicialmente vendia de forma independente em lojas de artigos rurais e até mesmo em circos, esgotaram-se rapidamente. A demanda foi tão avassaladora que as mesmas gravadoras que o haviam rejeitado agora disputavam o direito de distribuir seu catálogo. Cornélio Pires havia provado que o Brasil queria se ouvir.

Conheça o “pai do sertanejo”, o homem que transformou a vida rural em música
Cornélio Pires durante apresentação no início do século XX — Foto: Acervo/Pedro Massa/Instituto Cornélio Pires

O Legado

O impacto da “Turma Caipira” de Cornélio Pires, que incluía nomes hoje lendários como Zico Dias, Ferrinho, e a dupla Mandi e Sorocabinha, foi profundo.

  1. A Criação de um Mercado: Ele não inventou a música caipira, mas inventou o mercado da música caipira. Ele provou que havia um público massivo, tanto no interior quanto nas cidades (formado por migrantes rurais saudosos), disposto a pagar para ouvir aquele som.
  2. A Dignidade do Caipira: Ao colocar a música da roça no mesmo formato nobre do samba urbano – o disco de 78 rotações –, Pires deu dignidade ao artista do campo. Ele transformou o “capiau” em artista.
  3. A Ponte para o Futuro: O sucesso de Cornélio Pires abriu as portas para a segunda geração, que consolidaria o gênero. Sem ele, a jornada de duplas icônicas como Tonico e Tinoco, Tião Carreiro e Pardinho, ou Cascatinha e Inhana, teria sido infinitamente mais difícil, se não impossível.
  4. A Preservação da Memória: Este talvez seja seu maior legado. Cornélio Pires não gravou apenas música. Ele foi o primeiro a registrar “causos”, piadas, declamações e o que chamava de “fragmentos” do folclore. Ele foi, antes de tudo, um preservacionista. Ao documentar a cultura oral, ele criou uma cápsula do tempo sonora, salvando do esquecimento um modo de falar e de ver o mundo.

De Cornélio Pires ao agronejo

Hoje, o sertanejo é, de longe, o gênero musical mais ouvido e economicamente poderoso do Brasil. As cifras movimentadas pelo “agronejo” e pelos grandes festivais sertanejos alcançam bilhões de reais anualmente, sendo uma força cultural intrinsecamente ligada ao agronegócio moderno.

Embora o som tenha mudado, com a introdução de guitarras, baterias e temas mais urbanos, a raiz de tudo isso está no ato de coragem de Cornélio Pires.

Ele foi o homem que, quase cem anos atrás, teve a sensibilidade de ouvir a poesia que vinha da lida com o gado, do cheiro da terra molhada e da simplicidade da colheita. Ele não apenas ouviu; ele fez questão que o Brasil inteiro ouvisse também. Ele, de fato, transformou a vida rural em música.

Escrito por Compre Rural

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ℹ️ Conteúdo publicado pela estagiária Ana Gusmão sob a supervisão do editor-chefe Thiago Pereira

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