
Oito décadas após a morte do casal, restos mortais passaram por intenso processo de reconstituição nos laboratórios da Faculdade de Medicina da USP.
Nas primeiras horas da manhã de 28 de julho de 1938, Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, e Maria Gomes de Oliveira, Maria Bonita, sofreram uma emboscada pelas forças policiais comandadas pelo coronel João Bezerra da Silva em meio ao sertão do Sergipe, próximo à divisa com Alagoas. Há 87 anos, o assassinato do casal de bandoleiros colocava um ponto final no movimento de banditismo mais popular de nossa história.
Recentemente, os restos esqueletais do “rei e rainha do cangaço” — que nos últimos três anos estavam sob domínio dos laboratórios da FMUSP (Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo) — foram submetidos a um minucioso processo de reconstrução e se encontram hoje no acervo do Museu de Arte Sacra de São Paulo.
A docente do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP), Mercedes Okumura, explicou como se deu o trabalho de reconstituição dos crânios, definido por ela como um procedimento bastante lento e cuidadoso. “Foi preciso higienizar os restos, depois tentar remontar as partes presentes do crânio, unindo esses fragmentos com cola.”.
O historiador e museólogo do Departamento de Patologia da FMUSP, José Closs, reflete que, para além da minúcia e perícia durante a remontagem dos fragmentos, é preciso compreender o histórico de violações sofridas pelos restos mortais ao longo das últimas década.
“As aproximações anatômicas no encaixe dos fragmentos foram necessárias por conta da trajetória de violências e situações de guarda legadas aos crânios, mas, especialmente, ao de Lampião.”
Trajetória post-mortem
Logo após a morte do casal no sertão sergipano, os fragmentos estiveram em exposição no IML (Instituto Médico Legal) de Salvador (BA) por um período; depois foram encaminhados para Maceió (AL) onde permaneceram até 1944. De volta à capital baiana, os crânios seguiram em exibição no Museu do IML Nina Rodrigues até 1969, ano em que a família finalmente obteve o direito de sepultar os restos mortais no Cemitério Quinta dos Lázaros, também em Salvador.
Ali a ossada foi mantida até 2000, quando a administração do cemitério comunicou a família sobre mudanças que colocariam em risco o paradeiro dos fragmentos. Desde então, os crânios ficaram sob os cuidados de Expedita e Vera Ferreira, filha e neta do casal, respectivamente, em Aracaju (SE). Guardados durante duas décadas na casa da família, os crânios foram encaminhados ao Departamento de Patologia da FMUSP.
Questionado sobre eventuais danos, Closs ressalta que o processo de conservação adotado pela família foi, na verdade, o menos prejudicial em termos materiais e éticos ao longo dos últimos anos.
“Uma certa curiosidade mórbida da opinião pública acaba esquecendo que o tratamento legado aos mortos, tanto moral quanto legalmente, passa pelo zelo e curadoria dos familiares. A guarda em casa, longe de processos diagenéticos como radiação solar, oxidações químicas – sem falar dos danos à dignidade humana como em exposições que tratam de pessoas enquanto meramente objetos – foi o processo que menos danificou a matéria e a memória de Lampião e Maria Bonita.”
Reconstituição dos restos mortais
Mercedes, que liderou o trabalho de reconstrução das cabeças, revela que embora o crânio de Maria Bonita apresentasse um aspecto íntegro, o de Lampião encontrava-se bastante danificado.
Por isso, além da higienização dos fragmentos, foi necessário um processo de curadoria, ou seja, encontrar quais fragmentos podiam ser encaixados e colados, a fim de reconstituir aquele crânio.
O processo de reconstituição evidenciou, segundo a especialista, uma grande perda de material ósseo na parte direita do crânio, o que vai ao encontro do que se observa nas fotos tiradas logo após a decapitação (a famosa foto das cabeças na escadaria).
“Além dessas partes ósseas faltantes, o crânio apresenta muitas fraturas chamadas ‘perimortem’, ou seja, que ocorrem no período imediatamente anterior ou posterior ao processo de morte.”
Para a pesquisadora, as fraturas observadas podem ser associadas tanto ao impacto da bala de projetil como sobre a possibilidade de que a cabeça tenha sido alvo de golpes durante a execução.
Ela destaca ainda os danos causados pelo processo de decapitação sofrido por Virgulino. “Temos evidência dela a partir dos danos observados em alguns ossos que geralmente são danificados nesse processo: as vertebras cervicais e o osso hioide (localizado na região da garganta), além de algumas regiões da base do crânio.”.
Memória, direitos e Memorial do Cangaço
Oito décadas após o episódio final que eternizou a saga do cangaço na historiografia nacional, Closs enfatiza que devolver a integridade morfológica à biografia de Lampião e Maria Bonita é devolver a dignidade a eles como pessoas.
“Muito se fala da fama do casal, mas pouco se pensa sobre o fato de serem seres humanos como qualquer um de nós. A manutenção da matéria que compõe os sujeitos-monumentos de um processo histórico de suma relevância para a história do Brasil é a mesma que se pode empregar para qualquer outro semióforo que dê materialidade à história nacional brasileira.”
O museólogo acrescenta ainda que, se é preservado qualquer assunto da história do Brasil, por que não conservar a memória desta parte dela? Por isso defende a criação do Museu do Cangaço, e sua relevância, para a preservação da história assim como outros espaços dedicados à memória.
A previsão é que o memorial seja inaugurado em até três anos e reunirá, além dos crânios, um acervo guardado pela família, com objetos pessoais e outros bens que pertenceram à Lampião e Maria Bonita.
“Temos museus que mostram nossa fauna e flora, santos e imperadores, a cultura material ancestral pré-invasão colonial. Não existe uma escala de valores para a memória, por mais que saibamos como discursos hegemônicos recorrentemente promovem o memoricídio [apagamento da memória e identidade cultural]. O museu do Cangaço é, acima de tudo, um museu voltado para a memória dos direitos humanos. Uma tentativa de conservar a memória daquilo que não pode ser normalizado: a violência e o desrespeito.”
Mercedes finaliza lembrando que o extenso trabalho de reconstituição dos crânios de Lampião e Maria Bonita, ao longo de três anos, cumpre um importante papel para refletir sobre o tratamento dado a eles nas décadas seguintes às mortes e pelo respeito à memória.
“Além do conhecimento gerado sobre uma figura histórica de vulto, eu considero particularmente importante poder devolver a família o crânio do Virgulino reconstituído, simplesmente porque ninguém gostaria de ver um antepassado ou um parente tendo o tratamento após a morte que esse indivíduo teve. Nesse sentido, um estudo que visa reconstituir e estudar remanescentes humanos pode ser bastante importante para tentar devolver a dignidade à pessoa falecida e nos fazer repensar nossa relação com os mortos e como os tratamos.”
Fonte: CNN Brasil
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ℹ️ Conteúdo publicado por Myllena Seifarth sob a supervisão do editor-chefe Thiago Pereira
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