Mudança geracional, pressão por lucro e novas tecnologias de infraestrutura estão redesenhando o perfil do trabalho e da gestão no campo
O setor pecuário brasileiro está passando por uma transformação profunda e irreversível. A figura tradicional do “peão”, aquele profissional de campo cuja habilidade se baseava na intuição, na experiência de uma vida inteira e na “manha” para lidar com o gado, está com os dias contados. Não se trata do fim da função de cuidar dos animais, mas sim do fim do perfil como o conhecemos.
Essa mudança não é uma especulação futura; é uma realidade já em curso, impulsionada por um motor econômico e, acima de tudo, geracional.
O Motor da Mudança: A Nova Geração e o Fim do Romantismo
O principal catalisador dessa revolução é a inevitável troca de bastão nas famílias pecuaristas. A geração que desbravou a terra, abriu fazendas e construiu cercas possui uma relação profundamente emocional com o negócio. Para eles, a fazenda é um legado de vida, e a baixa lucratividade era, muitas vezes, tolerada em nome dessa paixão.
A nova geração, filhos e netos, enxerga a propriedade com um olhar diferente: o da razão. Eles não participaram da abertura da mata e não compartilham da mesma conexão emocional. Em vez disso, veem um “ativo” de milhões de reais que, em muitos casos, mal consegue pagar as próprias contas ou financiar o estilo de vida da família.
Diante de um patrimônio tão valioso, a nova geração se mostra muito menos complacente com a baixa lucratividade. A pergunta que eles se fazem é direta: “Temos um ativo de 100 milhões, mas vivemos sofrendo para pagar financiamentos. Por quê?”
Essa pressão interna força uma escolha drástica: ou a fazenda se torna uma empresa lucrativa, ou será vendida para quem consiga fazê-la funcionar.
O Imperativo Econômico: “Gente Feliz Batendo Meta”
A consequência direta dessa nova mentalidade é a profissionalização forçada da gestão. O lema nas fazendas mais modernas já mudou para “gente feliz batendo meta”. Não adianta apenas ter boas casas, um bom ambiente e inovação; se os números não aparecerem, a operação não se justifica.
A pecuária, assim como culturas mais industrializadas como a soja, o café ou a laranja, não permite mais amadorismo. Um pomar de laranja mal cuidado não sobrevive por muito tempo. Da mesma forma, a pecuária de baixa eficiência está fadada a desaparecer.
O paralelo com a agricultura é claro: se o custo da soja gira em torno de 50 a 60 sacas por hectare, o produtor que não colhe 70 “está morto”. Na pecuária, a lógica é a mesma. O produtor que não faz o básico sequer alcança lucros mínimos, como R$ 300 por hectare. Para que o ativo faça sentido, a nova geração mira metas audaciosas, como a necessidade de abater o equivalente a três bois por hectare.
Esse cenário desenha um futuro polarizado: de um lado, profissionais de altíssimo nível administrando operações de grande escala; do outro, pequenas propriedades familiares muito bem administradas e lucrativas. O pecuarista de médio porte e baixa eficiência tende a ser absorvido, seja vendendo ou arrendando suas terras para quem domina a tecnologia e a gestão.
O Desafio da Mão de Obra e a Solução na Infraestrutura
Se o peão tradicional está desaparecendo, quem irá executar o trabalho? A nova geração de trabalhadores rurais não possui o mesmo conhecimento prático. O “peão velho” era capaz de entrar no mato e, com seus cães, encontrar 12 novilhas perdidas de um lote de 87. O novo funcionário, treinado em processos, não saberá como fazê-lo.
O peão antigo tinha a “manha” de trazer o gado do fundo da fazenda para o curral sem a necessidade de corredores, apenas na base da habilidade. O novo, não.
A solução encontrada pelo setor não é tentar recriar o peão antigo, mas sim redesenhar a fazenda para que ela seja à prova de falhas e operável por qualquer pessoa treinada.
A resposta está na infraestrutura e nos processos.
Um exemplo prático é a criação de estruturas de manejo, como gaiolas de proteção apelidadas de “Zeloso”. Dentro de um equipamento assim, um funcionário sem experiência prévia — como uma atendente de posto de gasolina — pode ser treinado em um único dia para curar o umbigo de centenas de bezerros com perfeição.
Essa infraestrutura elimina os riscos (como a fungada de uma vaca protetora, que assustaria o novato) e as barreiras físicas (sistemas de roldanas eliminam a necessidade de força para suspender o animal).
O mesmo vale para o layout da fazenda. Se a nova mão de obra não sabe tirar o gado do mato, a solução é investir em corredores, cercas e um design de pasto que, em primeiro lugar, impeça que as 87 novilhas entrem no mato. A infraestrutura passa a fazer o trabalho que antes dependia da habilidade individual.
A Verdadeira Tecnologia Não é Apenas Digital
Embora a fazenda vá ser cada vez mais administrada eletronicamente — com QR Codes, câmeras e sensores monitorando até a hora que o boi bebe água —, a tecnologia mais impactante não é a digital.
A principal tecnologia da nova pecuária está no solo. O investimento em saúde do solo, matéria orgânica, atividade biológica e saturação de base é o que permite aumentar a produção de verdade, muitas vezes com uma adubação química mais leve ou até sem ela. O manejo de pastagem é a tecnologia-chave.
As ferramentas digitais (sensores, câmeras) entram como auxiliares de gestão, ajudando a medir e acompanhar se as metas de produção estão sendo atingidas.
No entanto, há um alerta: a dependência total da tecnologia digital cria riscos. O profissional que só sabe fazer contas na calculadora — ou o gestor que só opera com internet — fica paralisado se o sistema falhar.
Por isso, a transformação mais sólida é a que combina a gestão de dados com a infraestrutura física e biológica (solo e processos), criando uma operação resiliente, lucrativa e, acima de tudo, menos dependente da genialidade intuitiva de um único homem.
Escrito por Compre Rural
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ℹ️ Conteúdo publicado pela estagiária Ana Gusmão sob a supervisão do editor-chefe Thiago Pereira
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