
Essa é a história do chamado Government Cheese — o “Queijo do Governo” —, um exemplo extremo de como políticas públicas mal calibradas podem gerar excedentes colossais, crises logísticas e até fenômenos culturais.
No estado do Missouri, a centenas de metros abaixo do solo, em antigas minas de calcário naturalmente refrigeradas, o governo dos Estados Unidos armazenou, nas décadas de 1970 e 1980, um dos maiores volumes de queijo da história: mais de 600 milhões de quilos. Não se trata de uma operação industrial secreta ou de um feito da gastronomia, mas de uma das mais curiosas e monumentais tentativas de estabilizar o mercado de laticínios já registradas.
É a história do chamado Government Cheese — o “Queijo do Governo” —, um exemplo extremo de como políticas públicas mal calibradas podem gerar excedentes colossais, crises logísticas e até fenômenos culturais.
Subsídios, superprodução e o efeito colateral do excesso
A gênese desse episódio está em uma política agrícola bem-intencionada. Em 1977, o presidente Jimmy Carter sancionou o Food and Agriculture Act, uma legislação que garantia aos produtores de leite preços iguais ou superiores ao custo de produção. Com isso, o governo se comprometeu a comprar todo o excedente de leite ofertado pelos produtores, eliminando o risco do mercado.
O recado foi claro: produzam o máximo que puderem. Sem mecanismos de controle de produção, a indústria láctea respondeu com uma expansão agressiva. Porém, como o leite fresco é altamente perecível, a alternativa foi convertê-lo em derivados de maior durabilidade, como o queijo processado. Resultado? Um estoque crescente e incontrolável que, em 1981, já ultrapassava 250 milhões de quilos, atingindo o pico em 1984 com 544 milhões de quilos — ou mais de dois quilos de queijo por habitante dos EUA.
Government Cheese: Um pesadelo logístico com gosto de cheddar
Com os armazéns convencionais sobrecarregados e os custos de estocagem beirando US$ 1 milhão por dia, o governo precisou de uma solução inusitada: as minas subterrâneas. O principal centro de armazenamento foi instalado nas profundezas de Springfield, Missouri, onde vastas minas de calcário ofereciam milhões de metros quadrados com temperatura e umidade naturalmente controladas, perfeitas para conservar toneladas de queijo por tempo indefinido.
Além do Missouri, mais de 150 depósitos em 35 estados integraram essa rede nacional de estocagem. O que era para ser uma política de apoio ao produtor rural tornou-se um símbolo de descontrole estatal e ineficiência operacional.
De problema a política pública: a distribuição do queijo para a população

O ponto de ruptura veio em 1981, quando o Secretário da Agricultura John R. Block ergueu publicamente um bloco mofado de queijo, alertando a nação para o impasse. Diante da pressão política e do clamor social em meio à recessão, o presidente Ronald Reagan autorizou a liberação do estoque por meio do Temporary Emergency Food Assistance Program (TEFAP).
Assim, milhões de famílias de baixa renda passaram a receber blocos de 2,3 kg do queijo do governo. Para muitos, era uma fonte vital de proteína em tempos difíceis. Para outros, um estigma, a lembrança material da pobreza e da dependência estatal.
O legado: entre a cultura pop e a continuidade da política
Em 2025, o cenário mudou, mas não completamente. Os estoques subterrâneos já não estão abarrotados como nos anos 80, mas a prática do governo americano de comprar laticínios como forma de regulação ainda existe. Programas como o TEFAP continuam ativos, distribuindo alimentos para populações vulneráveis.
Mais surpreendente, porém, foi a transformação simbólica do Government Cheese. O que nasceu como solução emergencial virou ícone cultural. Referenciado em músicas de Jay-Z e Kendrick Lamar, e recentemente transformado em série de TV, o queijo do governo passou de símbolo de escassez a representação de superação e identidade social.
E o Brasil? Os desafios de um mercado sem amortecedores
Enquanto os EUA contaram com políticas de estocagem para proteger sua cadeia produtiva de laticínios, o Brasil ainda carece de um sistema estruturado de regulação de estoques para o leite. A volatilidade de preços afeta diretamente o produtor nacional, que, em muitos ciclos, vende abaixo do custo de produção.
A ausência de amortecedores em momentos de crise coloca o setor à mercê de fatores externos, de oscilações cambiais à concorrência de importações. A experiência americana, embora marcada por excessos, ensina que políticas de intervenção bem planejadas podem garantir previsibilidade, proteção ao produtor e segurança alimentar.
Escrito por Compre Rural
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ℹ️ Conteúdo publicado pela estagiária Ana Gusmão sob a supervisão do editor-chefe Thiago Pereira
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