Obrigatoriedade da rastreabilidade animal: como evitar multas milionárias na pecuária

Com multas que chegam a R$ 5.000 por hectare ou R$ 500 por quilo, ignorar a origem do gado – rastreabilidade animal – se tornou o maior passivo financeiro da fazenda

Um produtor rural no Pará pode ser multado em R$ 2,5 milhões. O motivo não é uma nova área desmatada em sua propriedade, mas sim a compra de 500 bezerros de uma fazenda vizinha que, meses antes, havia sido embargada pelo IBAMA. O produtor final, que engorda o gado, não verificou a origem. Agora, ele é corresponsável pelo crime ambiental.

Este cenário, antes uma ameaça distante, tornou-se a realidade imediata da pecuária brasileira. A rastreabilidade deixou de ser um diferencial para exportação e virou uma licença compulsória para operar, com dois gatilhos principais: as leis ambientais brasileiras e a nova regulamentação da União Europeia (EUDR).

O Cerco de R$ 5.000 por hectare

A ameaça financeira mais direta vem da legislação nacional. O Decreto Federal 6.514/2008, que regulamenta crimes ambientais, é explícito. Manter gado em área de desmatamento ilegal (mesmo que o desmate tenha sido feito por outro) ou em área embargada é uma infração gravíssima.

Os números são o centro do problema:

  • Multa por Desmatamento: A multa por desmatar ou impedir a regeneração de florestas é de R$ 5.000 por hectare.
  • Multa por Área Embargada: Se a área já estiver sob embargo oficial do IBAMA, a multa por utilizá-la para pastagem (ou qualquer atividade) dobra, iniciando em R$ 10.000 por hectare.

Para uma propriedade média na Amazônia Legal, uma falha na verificação de 200 hectares de pasto “contaminado” pode significar uma autuação de R$ 1 milhão a R$ 2 milhões.

Além do IBAMA, o Ministério Público Federal (MPF), através dos Termos de Ajustamento de Conduta (TACs da Carne), impõe multas pesadas aos frigoríficos que compram de produtores irregulares. Os frigoríficos, por sua vez, criaram “listas de bloqueio” e repassam o risco: qualquer fornecedor com pendência ambiental é imediatamente excluído da lista de compra.

O risco comercial

Se a multa interna não fosse suficiente, a pressão externa definiu um prazo de validade para a pecuária “analógica”. Desde 30 de dezembro de 2024, entra em vigor o EUDR (Regulamento da UE para Produtos Livres de Desmatamento).

A regra é clara: qualquer produto (carne, soja, café, etc.) que entrar na UE precisará comprovar, através de dados de geolocalização ponto a ponto, que não veio de áreas desmatadas após 31 de dezembro de 2020.

O tamanho do risco é colossal. Segundo dados da Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes (ABIEC), em 2022, as exportações de carne bovina para a União Europeia somaram US$ 1,84 bilhão. A partir de 2025, um único animal não rastreável em um contêiner de carne pode bloquear todo o lote, gerando prejuízos imediatos de exportação.

O ponto cego: O “Boi de Papel” do fornecedor indireto

A grande maioria das multas e bloqueios comerciais não ocorre por culpa do produtor que faz a terminação (a engorda final). O problema reside nos “fornecedores indiretos”.

A pecuária é fragmentada: um bezerro nasce em uma fazenda (cria), é vendido para outra (recria) e, finalmente, para uma terceira (engorda), antes de ir para o frigorífico.

Os frigoríficos monitoram bem seus fornecedores diretos (a última fazenda). O problema é que a Guia de Trânsito Animal (GTA), o documento oficial de movimentação, muitas vezes não reflete todo o histórico de vida do animal.

Estudos de institutos como o Imaflora são cruciais para entender essa lacuna. Um relatório de 2021 do Imaflora, analisando mais de 1,7 milhão de movimentações de gado no Pará, revelou que 29% apresentavam inconformidades com os critérios dos TACs da Carne.

“O pecuarista de engorda, muitas vezes, compra um lote de gado ‘de papel’, ou seja, com a GTA limpa, vinda de um intermediário regularizado. Mas esse intermediário pode ter comprado os animais de áreas de desmatamento”, aponta o relatório. O produtor final se torna, legalmente, o “lavador” desse gado, assumindo todo o risco ambiental e a futura multa.

Como evitar a multa com a rastreabilidade animal

Evitar a multa milionária não depende mais de “sorte” ou de conhecer a vizinhança. Depende de dados e tecnologia.

  1. Higiene Documental Básica: O primeiro passo é garantir que a documentação da própria fazenda esteja impecável. Isso significa ter o CAR (Cadastro Ambiental Rural) não apenas feito, mas analisado e aprovado (sem sobreposição com terras indígenas ou unidades de conservação) e todas as GTAs de entrada e saída emitidas eletronicamente e com precisão.
  2. O “Compliance” do Fornecedor: Este é o ponto-chave. Antes de comprar um lote de bezerros ou gado magro, o pecuarista precisa agir como um banco analisando um empréstimo. É preciso rodar o CPF ou CNPJ do vendedor em sistemas que cruzem dados públicos.
  3. Tecnologia como Defesa: Empresas de AgTech (como AgroTools, SafeTrace, Pecus) desenvolveram plataformas exatamente para isso. Elas integram, em segundos, os dados do CAR do fornecedor, as listas de áreas embargadas do IBAMA, as listas de trabalho análogo à escravidão do MTE e as guias de trânsito. O sistema emite um “sinal verde” (compre) ou “vermelho” (risco de multa) para cada transação.

O custo da inércia

A implementação de sistemas de software, a compra de brincos eletrônicos (RFID) ou o pagamento por auditorias têm um custo. No entanto, o setor é unânime em afirmar: o custo da adaptação é marginal perto do custo da inércia.

A multa de R$ 5.000 por hectare é aplicada sobre a irregularidade do passado. A perda do mercado europeu (US$ 1,84 bilhão) é a penalidade sobre o futuro. E o bloqueio pelos frigoríficos que seguem o TAC do MPF é a suspensão imediata das operações.

Na nova pecuária, o maior ativo do produtor não é mais apenas o pasto ou o rebanho; é a informação. O “boi de papel”, sem história ou origem comprovada, tornou-se o passivo mais caro do agronegócio brasileiro.

Escrito por Compre Rural

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ℹ️ Conteúdo publicado pela estagiária Ana Gusmão sob a supervisão do editor-chefe Thiago Pereira

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