
Investimento de R$ 100 milhões transforma resíduos de trigo em combustível renovável no Rio Grande do Sul
Tradicionalmente associado ao pão nosso de cada dia, o trigo começa a ganhar um papel inesperado no Brasil: o de combustível renovável. A inauguração da primeira usina de etanol de trigo no país, em Santiago (RS), marca não apenas um avanço tecnológico, mas também uma mudança de paradigma na matriz energética brasileira.
O cereal, que até então estava restrito à indústria alimentícia, passa a ser visto como vetor de energia limpa, diversificação econômica e segurança estratégica para um estado historicamente dependente da importação de combustíveis.
Por que o trigo gaúcho vira combustível
O Brasil é o segundo maior produtor mundial de etanol, alicerçado na cana-de-açúcar do Sudeste e no milho do Centro-Oeste. Porém, o Rio Grande do Sul, líder nacional na produção de trigo, sempre viveu a contradição de ser um grande produtor agrícola e, ao mesmo tempo, importador de etanol, cujo preço no estado chega a superar o da gasolina devido ao frete de outras regiões.
É nesse contexto que surge a usina da CB Bioenergia, um investimento de aproximadamente R$ 100 milhões, que aposta no aproveitamento de resíduos e subprodutos do trigo, materiais de baixo valor comercial e muitas vezes rejeitados, como base para a produção de combustível renovável.
Como é o trigo que vira etanol
Nem todo trigo colhido atende aos padrões da indústria de panificação, moagem ou exportação. Muitos lotes apresentam grãos de qualidade inferior, inadequados para farinha, mas ideais para fermentação. É justamente esse trigo que ganha protagonismo na produção de etanol. Na usina de Santiago, o processo começou com um trabalho de pesquisa inédito: mais de 150 variedades de trigo cultivadas no estado foram testadas em laboratório ao longo de três anos e meio, em parceria com a IFF, referência mundial em biotecnologia aplicada a biocombustíveis.
O objetivo foi identificar quais tipos apresentavam maior rendimento de amido fermentescível, que precisa estar acima de 65% para garantir eficiência, e, ao mesmo tempo, boa adaptação ao processo industrial. Diferentemente do trigo para panificação, que prioriza proteínas fortes, aqui o que importa é a concentração de amido.
Entre as características buscadas estão o alto teor de amido, a flexibilidade varietal, o aproveitamento de safras mistas e o uso de lotes rejeitados para panificação, que passam a ter destino produtivo. Além disso, tecnologias avançadas permitem que mesmo trigos com maior viscosidade ou impurezas sejam aproveitados de forma eficiente.
Leveduras e enzimas adaptadas, por exemplo, aumentam a taxa de conversão e reduzem perdas, assegurando que praticamente todo o potencial energético do grão seja transformado em etanol. Assim, o trigo destinado ao combustível não compete com o trigo do pão, mas nasce de uma lógica de economia circular em que cada parte da colheita encontra sua destinação: o grão de melhor qualidade vira farinha, enquanto os excedentes se transformam em energia.

Pesquisa e tecnologia: três anos e 150 variedades testadas
O projeto da CB Bioenergia reflete a integração entre ciência e indústria. Foram três anos e meio de pesquisas para identificar os trigos mais adequados, com resultados que ultrapassam a simples fermentação.
Enzimas específicas reduzem a viscosidade da massa de trigo, aumentando a eficiência industrial; leveduras desenvolvidas em laboratório ampliam a flexibilidade de uso, permitindo trabalhar com diferentes tipos de grãos sem perda de rendimento; e os ganhos chegam a 4,5% a mais de etanol, o que representa 1,5 milhão de litros adicionais por ano e quase R$ 4 milhões a mais em receita. Para produtores gaúchos, isso significa transformar o que antes era prejuízo em combustível e renda, como destaca um técnico envolvido no projeto: “O trigo que antes não tinha valor comercial agora se converte em energia e garante nova fonte de receita para o campo.”
Sustentabilidade e economia circular: nada se perde
O modelo implantado em Santiago adota o conceito de circuito fechado, em que todos os resíduos encontram aproveitamento econômico e ambiental. O CO₂ da fermentação será purificado e destinado à indústria de bebidas; o resíduo sólido poderá virar ração animal ou até embalagens biodegradáveis; o resíduo líquido, rico em nutrientes, será utilizado como fertilizante agrícola; e o álcool neutro atenderá segmentos de bebidas e cosméticos. Trata-se de um modelo que, além de não competir com a produção de alimentos, agrega valor a materiais antes descartados, transformando desperdício em receita e fortalecendo a lógica da bioeconomia.
O potencial econômico do etanol de trigo em números
A usina de Santiago inicia operações com capacidade para produzir entre 10 e 12 milhões de litros de etanol hidratado por ano, mas os planos são ambiciosos: até 2027, a meta é alcançar 45 a 50 milhões de litros de etanol anidro anuais, com investimentos previstos de até R$ 500 milhões.
Além do impacto energético, os reflexos sociais e econômicos também são relevantes: cerca de 120 postos de trabalho diretos e indiretos, movimentação econômica regional com a implantação de um posto de combustível próprio, investimento adicional de R$ 20 milhões, e a perspectiva de garantir ao consumidor gaúcho um etanol mais competitivo que a gasolina. Para o Rio Grande do Sul, isso significa reduzir a dependência de combustíveis vindos de outras regiões e, ao mesmo tempo, valorizar sua principal cultura de inverno.
O Brasil no cenário internacional
Na Europa, o etanol de trigo já é consolidado: em 2023, o continente produziu 6,5 bilhões de litros de etanol, sendo 25% a partir do trigo. No Canadá e nos Estados Unidos, a produção de biocombustíveis a partir de cereais, incluindo o trigo, também é realidade, reforçando que essa é uma tendência global. O Brasil, que já ensinou o mundo a transformar cana e milho em energia, agora se prepara para entrar no mapa internacional também com o trigo, posicionando-se não apenas como seguidor, mas como inovador em bioenergia.
O futuro: trigo como ativo estratégico do agro brasileiro
O trigo abre portas não apenas para o etanol, mas também para o biodiesel, já que óleos e resíduos do grão podem ser aproveitados nesse processo. Empresas como o Grupo Idugel já desenvolvem tecnologias que otimizam moagem, peneiração e filtragem, etapas essenciais para transformar grãos em combustíveis de qualidade.
Assim, a cultura do trigo se torna ainda mais estratégica para o agronegócio brasileiro: na mesa, segue como alimento essencial; no campo, gera ração e fertilizantes; na indústria, abastece mercados de bebidas, cosméticos e embalagens biodegradáveis; e nos tanques, desponta como combustível competitivo.
O novo capítulo energético do Brasil
Se antes o trigo no Brasil era visto apenas como cultura de inverno e dependente de importações, hoje ele se projeta como ativo estratégico para a soberania alimentar e energética do país. A usina de Santiago é apenas o ponto de partida de uma transformação que alia tecnologia, sustentabilidade e geração de renda. E, assim como o Brasil mostrou ao mundo a força da cana e do milho, agora o trigo se soma a essa história como grão multifuncional, capaz de alimentar, gerar energia e fortalecer a liderança do país na transição energética global.
Escrito por Compre Rural
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ℹ️ Conteúdo publicado pela estagiária Ana Gusmão sob a supervisão do editor-chefe Thiago Pereira
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