Propriedade em risco: o fogo e a perda de direitos

O agravamento das queimadas — em especial a partir de eventos críticos como os de 2024 – elevou a vigilância estatal e resultou no endurecimento de sanções administrativas, penais e civis.

O uso do fogo em propriedades rurais, embora historicamente vinculado a práticas tradicionais como a renovação de pastagens, tornou-se hoje um fator de alto risco jurídico. O agravamento das queimadas — em especial a partir de eventos críticos como os de 2024 – elevou a vigilância estatal e resultou no endurecimento de sanções administrativas, penais e civis.

Mais do que nunca, a propriedade rural está sob forte controle e exigência legal. As novas normas não apenas ampliam o escopo das infrações, como também impõem deveres preventivos específicos, cuja omissão pode ensejar multas milionárias e, em casos graves, até a perda do direito de propriedade.

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Este artigo tem por objetivo esclarecer as implicações jurídicas do uso do fogo no meio rural, apresentar os novos marcos legais e jurisprudenciais sobre o tema e orientar os produtores quanto às obrigações legais de prevenção, indispensáveis para garantir segurança jurídica e evitar prejuízos irreversíveis.

O fogo e a tríplice responsabilidade ambiental

No Direito Ambiental existe a chamada tríplice responsabilidade, que permite que o mesmo evento seja punido na esfera administrativa, penal e cível de forma independente. As diretrizes nacionais de combate ao fogo ficaram nitidamente mais rígidas após as queimadas de 2024, o que trouxe reflexos para as três esferas de responsabilização.

A comoção social e a pressão por uma atuação governamental, culminou na edição de normas e decretos que aumentaram as penalidades e criando a obrigação de adoção de mecanismos de prevenção.

Nesse contexto, o que chama mais atenção é a responsabilização ao particular, foram criadas regras específicas envolvendo incêndios em propriedades.

O uso do fogo em área de vegetação já era proibido pelo Código Florestal (Lei no 12.651/2012, art. 38), sendo que a ausência de autorização caracterizava infração administrativa punível pelo artigo 58 do Decreto no 6.514/2008. Com o advento do Decreto no 12.189/2024, as penalidades administrativas foram agravadas. O uso do fogo desautorizado em área agropastoril teve a multa majorada de R$ 1mil para R$ 3mil e foram acrescentadas mais duas previsões: incêndios em vegetação nativa (artigo 58-A) ou cultivada (artigo 58-B) com multas de R$ 10 mil e R$ 5 mil por hectare, respectivamente.

Aqui destaca-se, no artigo 58-C, a nova previsão de infração por omissão num dever específico de cuidado que é a prevenção aos incêndios. As leis estaduais já previam, por exemplo, os aceiros, porém, o Decreto de 2014 foi além, e previu um tipo específico de omissão na prevenção conforme as normas estabelecidas pelo Comitê Nacional de Manejo Integrado do Fogo e pelos órgãos competentes do Sisnama. As sanções podem alcançar R$ 10 milhões.

Na esfera penal, a Lei no 9.605/1998 (Lei de Crimes Ambientais), em seu artigo 41, que antes previa o tipo penal “provocar incêndio em mata ou floresta”, passou a prever “provocar incêndio em floresta ou em demais formas de vegetação”, claramente abrindo um leque maior de possibilidades que possam ser enquadradas na descrição do crime, a intenção é incluir as práticas ocorridas no cerrado¹.

Já na esfera cível, a responsabilização por dano ambiental é objetiva e solidária, nos termos da Lei no. 6.938/1981. Isso significa que, independentemente de culpa, a simples comprovação de que o dano ocorreu em área sob posse ou domínio do proprietário rural já é suficiente para ensejar a obrigação de reparar.

Além da imposição cível de reparação do dano independente de culpa, os Tribunais têm entendido que sanções ainda mais rigorosas, como a perda da propriedade possam ser aplicadas, como na recente decisão do Supremo Tribunal Federal.

O endurecimento das sanções nos Tribunais: a decisão do STF

Em abril de 2024, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 743, o Supremo Tribunal Federal consolidou uma nova diretriz sobre a responsabilização ambiental.

O Ministro Flávio Dino determinou que a União deve tomar medidas para desapropriar terras que tenham sido alvo de incêndios criminosos ou desmatamentos ilegais, desde que comprovada a responsabilidade do proprietário. Além disso, essas áreas não poderão ser regularizadas, e o poder público está autorizado a ajuizar ações indenizatórias contra os responsáveis.

Esse paradigma sinaliza um endurecimento na responsabilização patrimonial, consolidando o fogo como elemento agravante para efeitos de perda da terra e exclusão de programas públicos. Há uma valorização do cumprimento da função socioambiental do imóvel, sendo considerada como requisito fundamental para o exercício do direito de propriedade.

Medidas de prevenção

A Política Nacional de Manejo e Controle de Queimadas (art. 40 do Código Florestal) passou a exigir, com a nova redação da Lei no. 14.944/2024, a adoção de planos de manejo integrado do fogo por todos os responsáveis por áreas com vegetação nativa.

O Decreto no. 12.189/2024 complementa essa obrigação ao estabelecer a penalidade para quem deixar de implementar medidas preventivas (art. 58-C). A recomendação é que os proprietários:

Avaliem a vegetação da área e elaborem plano de contingência;

  • Realizem campanhas internas orientando sobre riscos do fogo;
  • Evitem atividades de alto risco em períodos de seca;
  • Documentem ações preventivas e orientações operacionais.

Essas medidas não são mais facultativas — passaram a ser exigências legais e sua ausência pode resultar em sanções gravíssimas, mesmo que nenhum incêndio venha a ocorrer.

Conclusão

O cenário atual exige dos produtores rurais uma mudança de postura: o fogo, que antes era uma ferramenta de manejo, passou a ser um vetor de responsabilização e risco patrimonial elevado. A legislação mais rigorosa e a nova jurisprudência consolidada pelo Supremo Tribunal Federal apontam para um futuro em que a função socioambiental da propriedade será critério fundamental para sua preservação jurídica.

Nesse contexto, não basta mais simplesmente evitar o uso do fogo. É indispensável demonstrar diligência ativa e preventiva, com planos, registros e ações concretas de controle de risco. A omissão, mesmo que involuntária, pode custar caro — com multas, restrições de acesso a políticas públicas e, em casos extremos, a perda da terra.

A propriedade rural está, de fato, em risco, quando não acompanhada de gestão ambiental estruturada e alinhada às exigências legais atuais. Prevenir não é apenas evitar as chamas: é proteger o direito de continuar sendo proprietário.

¹O Cerrado registrou um aumento de 221% nas áreas queimadas em agosto de 2024, segundo dados divulgados pelo Monitor do Fogo, uma iniciativa da rede MapBiomas, coordenada pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam). Disponível em: https://g1.globo.com/meio-ambiente/noticia/2024/09/19/cerrado-fogo-em-savanas-sobe-221percent-em-agosto-veja-ranking-de-municipios-que-mais-queimaram.ghtml. Acesso em 20 maio 2025. 

Fonte: Scot Consultoria

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ℹ️ Conteúdo publicado por Myllena Seifarth sob a supervisão do editor-chefe Thiago Pereira

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