
Garantia fiduciária em xeque: entenda a controvérsia jurídica em torno da possibilidade de consolidação da propriedade fiduciária durante o período de suspensão das ações e execuções (stay period)
Por Camilla Correa* – Em que pese a Lei de Recuperação Judicial/Extrajudicial e Falências tenha expressamente excluído do regime concursal os créditos garantidos por alienação fiduciária, conferindo-lhes tratamento privilegiado diante da titularidade da propriedade fiduciária, o legislador estabeleceu importante ressalva em seu artigo 49, § 3º. Nesse ponto, visando equilibrar o exercício do direito de propriedade com a necessidade de preservar a atividade empresarial, a norma assegura a manutenção da posse direta do bem essencial com o devedor, impedindo sua retirada ou venda durante o período de blindagem previsto no artigo 6º.
Diante dessa disposição legal, emergiram diversos questionamentos que vêm sendo objeto de análise pela doutrina e pela jurisprudência pátria, especialmente no que tange à aparente antinomia entre o direito real de propriedade do credor fiduciário e o princípio de preservação da empresa.
De um lado, argumenta-se que impedir o exercício pleno do direito do credor fiduciário esvaziaria a eficácia da garantia, gerando insegurança jurídica e desestímulo à concessão de crédito. De outro, sustenta-se que permitir a consolidação da propriedade durante o stay period comprometeria os esforços de reestruturação empresarial, ao subtrair da recuperanda bens que, muitas vezes, são essenciais à continuidade de suas atividades.
A alienação fiduciária é um instituto de natureza real, concebido para assegurar o cumprimento de uma obrigação mediante a transferência da propriedade resolúvel do bem do devedor (fiduciante) ao credor (fiduciário). Sua essência repousa na dissociação entre a titularidade formal — que é transmitida ao credor a título de garantia — e a posse direta, que permanece com o devedor até o adimplemento da obrigação.
Em caso de inadimplemento, o credor pode requerer a consolidação da propriedade em seu nome, nos termos do artigo 26 da Lei nº 9.514/1997 (no caso de bens imóveis), após o cumprimento das formalidades legais, como a notificação extrajudicial do devedor.
À luz do entendimento do exímio doutrinador Melhim Namen Chalhub, a consolidação da propriedade em favor do credor fiduciário não constitui um fim em si mesma, mas representa etapa necessária à alienação do bem dado em garantia. Nesse sentido, a consolidação implica a extinção do direito aquisitivo do devedor fiduciante, conferindo ao credor a plena titularidade do bem, com vistas à sua alienação para satisfação do crédito garantido. Veja-se:
“Com efeito a consolidação dá início ao procedimento de realização da garantia. […]
A consolidação da propriedade importa na extinção do direito aquisitivo do devedor fiduciante.
Com efeito, a propriedade fiduciária é uma propriedade resolúvel com características especiais, de modo que, realizada a condição (pagamento) que opera sua extinção, o bem reverterá ao patrimônio do fiduciante (devedor); ao contrário, não ocorrendo o a condição resolutiva, a propriedade, que já se encontra no patrimônio do fiduciário (credor), com as restrições próprias da resolubilidade, nele permanecerá, agora consolidada como propriedade plena (Código Civil, parágrafo único do art. 1.368-B)”
Em contrapartida, o instituto da recuperação judicial tem como fundamento central a preservação da empresa, compreendida como vetor de geração de empregos, tributos e desenvolvimento econômico. Para viabilizar esse objetivo, o artigo 6º da Lei nº 11.101/2005 estabelece a possibilidade de suspensão das ações e execuções que envolvam o devedor, pelo prazo máximo de 360 (trezentos e sessenta) dias, de modo a assegurar um ambiente juridicamente estável e propício à reestruturação da atividade, permitindo a negociação com os credores sem o risco de desarticulação do patrimônio essencial à continuidade das operações.
No âmbito do direito comercial comparado, observa-se um intenso debate teórico acerca dos objetivos fundamentais que devem nortear uma legislação concursal. Parte significativa da doutrina, especialmente aquela alinhada à corrente do Law and Economics, sustenta que a principal finalidade do sistema deve ser a maximização da satisfação dos créditos, priorizando os interesses dos credores. Por outro lado, uma corrente contraposta defende que, para além da proteção ao crédito, a legislação concursal deve também promover a preservação da empresa.
No tocante à legislação falimentar brasileira, embora se reconheça a intensa participação dos credores no processo recuperacional, a Lei nº 11.101/2005 alinha-se predominantemente à segunda concepção acima mencionada, ao eleger como princípio estruturante a preservação da empresa. Nesse sentido, os doutrinadores João Pedro Scalzilli, Luis Felipe Spinelli e Rodrigo Tellechea, corroboram o entendimento ora exposto:
“A legislação concursal brasileira (Lei 11.101), ainda que conte com intensa participação de credores, filia-se à primeira concepção, na medida em que elege como princípio cardeal a preservação da empresa, em atenção aos interesses de todas as classes que em torno dela gravitam.”
Nesse sentido, compreende-se que em concorrência de outra norma com a LREF, há de se prevalecer a maximização do princípio de preservação da empresa. Isso porque, tendo em vista que a recuperação judicial visa propiciar um ambiente que favoreça o soerguimento empresarial e a reorganização financeira, previne-se quaisquer atos que possam macular esse objetivo.
Com isso, a consolidação da propriedade fiduciária pelo credor durante o stay period deve ser analisada com cautela, pois pode representar afronta direta à finalidade da recuperação judicial. A consolidação, embora prevista na Lei nº 9.514/1997, não pode ser utilizada de forma a frustrar a tentativa legítima do devedor em crise de manter sua atividade empresarial.
Sopesa-se que a blindagem conferida ao credor fiduciário não pode ser interpretada como um salvo-conduto absoluto, ainda mais quando se trata de garantias imprescindíveis para a recuperação do devedor, ou seja, se o bem for considerado essencial, não se deve permitir a consolidação da propriedade.
Dessa forma, não se trata de suprimir os direitos do credor fiduciário, mas de submetê-los a uma ponderação legítima e proporcional, ainda mais considerando-se que a suspensão dos atos de consolidação ou alienação é temporária, limitando-se ao período de blindagem legal previsto no art. 6º, caput, da Lei 11.101/2005, e que, após esse período, o devedor poderá ter a real possibilidade de se reerguer e purgar a mora.
Corroborando essa premissa, o doutrinador Moacyr Petrocelli de Ávila Ribeiro, ao tratar da possibilidade de consolidação da propriedade fiduciária no contexto da recuperação judicial, ressalta a necessidade de avaliação da essencialidade do bem. In verbis:
“Por premissa, recorde-se de que a consolidação da propriedade em nome do credor fiduciário, per se, não implica a perda automática da posse do imóvel pelo devedor fiduciante. Demais disso, vale lembrar que o objetivo da concessão do stay period é justamente permitir que a recuperanda tenha um fôlego para reorganizar suas atividades, evitando-se qualquer situação que obste o prosseguimento da recuperação judicial, como uma constrição judicial.
Há de relevar, entretanto, que, muito embora o devedor fiduciante não perca automaticamente a posse do imóvel, com a consolidação da propriedade plena em favor do credor fiduciário, exsurge a possibilidade de lançar a qualquer momento a pretensão de ser reintegrado na posse do imóvel, ex vi, do art. 30 da Lei 9.514/1997. […]
O díscrimen, inexoravelmente, será o fato de, in concreto, o imóvel ser ou não essencial à atividade da empresa em recuperação judicial. Não se enquadrando nesse perfil, não há qualquer óbice a dar-se seguimento ao procedimento de consolidação da propriedade fiduciária, em prestígio ao art. 49, § 3°, da Lei 11.101/2005.”
Em outra perspectiva, observa-se que mesmo antes da reforma promovida pela Lei nº 14.112/2020, que alterou substancialmente a Lei de Recuperação e Falências, os precedentes jurisprudenciais oriundos das Varas e Câmaras Especializadas em Direito Empresarial já exaravam entendimento alinhado à tese ora defendida.
Isto é, a interpretação sistemática da legislação leva ao reconhecimento de que a consolidação da propriedade fiduciária não deveria ocorrer durante o stay period, especialmente quando o bem garantido era essencial à atividade empresarial. Veja-se:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. DECISÃO QUE DEFERIU TUTELA DE URGÊNCIA PARA SUSPENDER A CONSOLIDAÇÃO DA PROPRIEDADE DE DOIS IMÓVEIS ALIENADOS FIDUCIARIAMENTE À AGRAVANTE DURANTE O STAY PERIOD. MANUTENÇÃO. BENS ESSENCIAIS AO SOERGUIMENTO DAS RECUPERANDAS. UNIDADES PRODUTIVAS. ATIVIDADE AGRÍCOLA. ART. 49, § 3º, DA LEI Nº 11.101/05. CIRCUNSTÂNCIAS DO CASO CONCRETO QUE JUSTIFICAM A MANUTENÇÃO DA DECISÃO AGRAVADA. RECURSO NÃO PROVIDO. (TJ-SP – AI: 21223538120188260000 Garça, Relator.: Alexandre Lazzarini, Data de Julgamento: 10/09/2018, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 06/09/2018)
RECUPERAÇÃO JUDICIAL. Decisão que prorroga o prazo previsto no art. 6º, § 4º, da Lei nº 11.101/2005 por mais 180 (cento e oitenta) dias. […] Ainda que o devedor fiduciante consiga reorganizar-se e reunir recursos para purgar a mora, isso não será mais possível, uma vez que a propriedade plena já estará em definitivo consolidada nas mãos da credora fiduciária. Razoável, portanto, em harmonia com a própria finalidade do stay period, se evite nesse meio tempo situação definitiva e irreversível de perda da propriedade, permitindo à devedora soerguer-se, purgar a mora e retomar o contrato. (TJ-SP – AI: 21351635920168260000 SP 2135163-59 .2016.8.26.0000, Relator.: Francisco Loureiro, Data de Julgamento: 22/08/2018, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 22/08/2018)
A inviabilidade da consolidação da propriedade do imóvel dado em garantia fiduciária é, em síntese, pelas seguintes razões:
- (I) o caráter essencial dos imóveis na manutenção das atividades da recuperanda, de acordo com seu escopo social;
- (II) poderia obstar a recuperação judicial, haja vista que, uma vez consolidada a propriedade, a posse poderia ser postulada pelo credor fiduciário ou pelo eventual arrematante, irremediavelmente prejudicando, assim, a recuperanda;
- (III) o prazo de stay period tem como objetivo a reorganização das empresas, podendo garantir a purgação da mora e a manutenção dos imóveis pelos devedores e não dele se aproveitar para liquidar certas dívidas inicialmente apresentadas em prejuízo do conjunto de credores e da própria atividade empresarial pela recuperando desenvolvida.
Por outro prisma, em recentíssima decisão o juízo da Vara Cível da Comarca de Montividiu – GO, interpretou que o art. 49, § 3° da Lei 11.101/2005, veda a retirada da posse dos bens pelos recuperandos durante o stay period, mas não impede a consolidação da propriedade fiduciária nem a sua alienação extrajudicial. Veja-se:
“Em relação ao pedido de reconsideração, nota-se que a autorização para a continuidade do procedimento de consolidação da propriedade em nome do credor fiduciário implica, necessariamente, na autorização para alienação via leilão público, eis que é este o rito legal previsto na lei 9.514/97. Portanto, seria contraditório autorizar o prosseguimento do rito de consolidação da propriedade em nome do credor fiduciária sem que houvesse a autorização para a alienação do bem. Efetivamente, a essencialidade, como já manifestado por este juízo, implica apenas na impossibilidade de sua retirada da posse do imóvel enquanto estiver pendente o stay period.” (Processo 5642138-15.2024.8.09.0183 – Juiz Guilherme Bonato Campos Caramês – Vara Cível de Montividiu-GO – Recuperação Judicial)
Nesses termos, analisa-se que, ao se compreender que a autorização da consolidação da propriedade fiduciária implicaria, necessariamente, na sua posterior alienação em leilão público — hipótese esta vedada pelo art. 49, § 3º, da Lei 11.101/2005 durante o stay period —, deveria, sob uma interpretação teleológica da norma, ser obstada a própria consolidação enquanto perdurar a blindagem legal.
Assim, se compreende que a vedação à alienação abrange, implicitamente, a vedação à consolidação da propriedade, quando o bem se revelar essencial à continuidade das atividades da empresa em recuperação.
Conclui-se que a consolidação da propriedade fiduciária durante o stay period deve ser analisada com cautela, especialmente quando envolva bens essenciais à atividade empresarial do devedor em recuperação. Embora o credor fiduciário goze de certa blindagem legal, esta não pode ser interpretada de forma absoluta ou dissociada da finalidade do processo recuperacional.
Por isso, o desafio posto ao Poder Judiciário tem sido justamente encontrar o ponto de equilíbrio entre o direito do credor à satisfação de seu crédito e o interesse coletivo na continuidade da atividade empresarial viável, evitando que garantias reais operem como instrumentos de inviabilização do soerguimento econômico da empresa em crise.
Camilla Correa é advogada especialista em reestruturação financeira do produtor rural, da banca João Domingos Advogados.
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