Um pouco de história: para tudo, eu quero ser queijeira!

Como decidir consagrar uma grande parte de sua vida aos queijos? Sempre há uma memória, uma cena marcante, uma emoção forte, uma lembrança extraordinária que vai apertar o gatilho, dar o clique de um novo horizonte, selar um destino.

Carolina Vilhena, de Bofete, Marina Cavechia, de Brasília e Aline Biazus, de Passo Fundo são profissionais bem sucedidas em suas carreiras, mas faltava algo mais.

Para Carolina era a saudade daquela memória de fazenda e natureza da infância que nunca nos abandona. Para Aline a lembrança da avó que fazia queijo na cozinha, os odores do leite em transformação.

E o que deu em Marina foi a vontade súbita de trabalhar com um produto vivo e tão controverso que é o queijo artesanal.

Carolina Vilhena Bittencourt, 38, do jerked beef ao queijo, passando por uma escola infantil

Trajetória: Em 1984 meu pai comprou sua primeira fazenda em Prata, Minas Gerais. Nessa época eu tinha cinco anos. Foi lá que tudo começou, eu sempre acordava cedo para tirar leite da vaca, abrir e fechar a porteira do curral. Meu pai me ensinava os tipos de pastos e as plantas invasoras. Eu sempre falei que seria veterinária. Em 2003 estava na faculdade e meu pai progrediu nos negócios, já tinha entre duas e três mil vacas de corte que abasteciam a Vilheto Alimentos, nossa empresa de jerked beef (carne seca). Por sete anos trabalhei na área de qualidade da empresa. Depois, resolvi mudar de área e fui ser sócia da minha irmã, fundamos a Bosque das Letras, uma escola infantil em Jandira, São Paulo. Fiquei ali por quase dez anos, época que fui mãe do André e do Luca, que hoje têm dez e sete anos.

A decisão: Em 2015 eu não aguentava mais de saudades da lida da fazenda, das vacas. Foi em uma viagem com amigos na Itália que eu confessei meu desejo. Eu não tinha mais dúvidas, minha paixão verdadeira era a fazenda. No almoço saímos pra dar uma volta em Ravelo e, procurando uma loja para comprar vinho e queijos, nos indicaram um Caseificio (fábrica de queijos). Chegamos e tinha uma vitrine super bonita, eles estavam fazendo uma muçarela, eu sempre gostei de cozinhar. Meu amigo olhou pra mim e falou: “Carol, isso aqui é sua cara, você gosta de cozinhar, é esse seu caminho”. Em 2016 eu comecei a fazer pães de fermentação natural eu ganhei uma muda de kefir. Após esse contato com os fermentos naturais, eu declarei para mim mesma que meu projeto era fazer queijo. Em seguida conheci A Queijaria, loja de queijos artesanais na Vila Madalena, fiz um curso no Capril do Bosque sobre criação de caprinos de leite, depois uma viagem para a Serra da Canastra em janeiro de 2017, onde visitamos algumas fazendas.

Eu fui me encantando. Fiz amigos queijeiros que me apoiam, fui me empoderando. Em julho de 2017 fiz o curso de cura de queijos da Delphine Gehant organizado pela SerTãoBras na Serra da Canastra. O amor foi crescendo!

Do primeiro queijo a uma gama de produtos que promete crescer… FOTO: Carolina Vilhena/Acervo Pessoal.

Nunca vou esquecer quando fiz meu primeiro queijo. Recebi em casa um kit “descoberta”: leite, coalho, pingo, forma e segui passo a passo de um tutorial no youtube. Em setembro fui pra Itália participar do Cheese, o maior evento de queijos do mundo. Em seguida fiz os cursos do mestre queijeiro francês Hervé Mons em São Paulo no mês de novembro. Não dá vontade de parar. Decidi vender a escola e me dedicar ao queijo, negócio assinado em 20 de dezembro de 2017.

Carolina apresentou na Serra da Canastra seus queijos azuis inoculados com mofos cultivados em casa, a partir de pão mofado. FOTO: Arnaud Sperat Czar/Profession Fromager.

Os planos para o futuro: Em janeiro estarei em Vermont, nos Estados Unidos, para fazer o curso de queijos naturais com David Asher. Ter lido seu livro The Art of Natural Cheesemaking mudou minha visão sobre o que quero fazer. Meu objetivo agora é estudar mais, aprimorar minha técnica. Minha ideia é perseverar na filosofia de fermentos vivos cultivados em casa, mas não sei se conseguirei fazer todos os queijos que eu quero. Não quero produção grande, mas quero ter queijos de excelente qualidade. E quero ajudar pessoas como eu que querem mudar de profissão, transmitir a minha paixão. Penso em fundar um centro de formação onde possamos fazer isso. Vamos fazer uma exposição de fotos na fazenda, com as imagens que retratam o amor que sentimos por aquele pedaço de terra…

Marina Altafin Cavechia, 35, do jornalismo ao cheese-bar, passando pela cerveja

As primeiras experiências de cura de Marina foram queijos de casca lavada. FOTO: Marina Cavechia/Acervo Pessoal.

Trajetória: Fui jornalista entre 2005 e 2015, eu era editora-chefe de um núcleo de televisão. Em 2010, eu e um sócio criamos o clube de cerveja por assinatura Ohmybeer que conciliei com o jornalismo por cinco anos. Em 2012 eu estava deitada na cama, pronta pra dormir, quando decidi que queria estudar queijo. Procurei na internet algum curso e nada. Escrevi para um instituto famoso no Brasil, mas eles haviam suspendido os cursos por falta de verba. Encontrei um especialista, mas ele tinha contrato de exclusividade com o Pão de Açúcar e não podia me ajudar. Escrevi e ele respondeu: se eu quisesse estudar queijo, precisaria sair do Brasil. A essa altura eu não sabia ainda que meu caminho seria produzir queijo. Desanimei, foquei na cerveja artesanal e no jornalismo.

A decisão: Em 2015 decidi parar tudo para me dedicar ao queijo. Fui para a Serra da Canastra e entrei em contato com um novo universo. Apesar de ser mineira, eu não entendia direito o mistério dos queijos da Canastra. Não sabia porque eles não podiam ser vendidos em Brasília. Eu demorei pra entender a filosofia de vida dos produtores e a importância do queijo tradicional. Eu não fazia ideia do tal terroir, nunca tinha ouvido falar em pingo (fermento lácteo usado na Canastra). Só conhecia queijo de trança, meia cura, frescal e queijo pra ralar. Pra mim, queijo artesanal se resumia a isso. Lá eu vi uma mesa cheia de queijos que eu nunca tinha ouvido falar, com gostos que eu nunca havia sentido. Meu coração disparou. Eu fiquei eufórica, maluca. Eu finalmente entendi que queria produzir queijo, que daqui a dez anos quero estar fazendo e vendendo queijo, minha energia se voltou totalmente para essas duas atividades: produzir e vender queijo artesanal brasileiro.

Como executar esse plano de vida? Na maior cara de pau, pedi para fazer uma imersão na fazenda Atalaia, no interior de São Paulo. Fiquei uma semana trabalhando no laticínio, fazia o mesmo horário dos funcionários. Dormia no quarto de hóspedes da fazenda e sentava à mesa com os queridos Paulo e Rosana.

Paulo Rezende da Fazenda Atalia e Marina: “Não paguei um centavo por toda essa hospitalidade e aprendi um mundo de coisas.” FOTO: Marina Cavechia/Acervo Pessoal

Acredito que aprender a fazer queijo pela internet não funciona. Eu precisava sentar numa sala de aula. Foi em um desses cursos promovidos pela Sertãobras que eu comecei a entender a importância do processo de cura. Em cada encontro eu entendia melhor o movimento de valorização dos produtores artesanais, as dificuldades da legislação, a importância do leite cru. Fiz três cursos de cura e dois de gestão de boutique de queijo. Depois, fiz um curso de formação no Instituto Cândido Tostes, assisti palestras sobre legislação, vi de perto degustações assistidas por franceses e tive lições de harmonização. No último curso com as professoras Delphine Gehant e Débora Pereira, eu levei meu queijo. Estava morrendo de medo, mas queria mostrar e receber críticas. Um queijo de vaca, leite cru, casa lavada, curado por dois meses. Chorei de emoção quando os professores levaram meu queijinho pra frente da sala para usar como bom exemplo. Entendi que estava no caminho certo.

Bem, um problema importante continuava existindo: como fazer queijo se eu não tinha vaca (e nem outro animal)? A fazenda da minha família fica em Estrela do Sul, MG, a 400 km de Brasília. Não dava. A alternativa foi fazer parcerias com fazendas produtoras de leite de Goiás. Só assim eu poderia continuar aprendendo, testar receitas, colocar em prática o que eu aprendia nos cursos. Primeiro me instalei em uma fazenda em Alexânia, Goiás, a uma hora de Brasília. Todas as sextas ia para a roça transformar apenas 80 litros de leite em queijos a serem curados em câmaras frias improvisadas. Na sexta-feira a queijaria era minha. Eu comprava o leite dos próprios donos da fazenda e dividia os gastos. Eu me tornei uma queijeira cigana.

Dois queijos de Marina ganharam medalhas de ouro e de prata no Prêmio Queijo Brasil em São Paulo em 2017. FOTO: Maria Cavechia/Acervo Pessoal.

É claro que ganhar prêmio não é o foco, mas serviram para me motivar. Foi bom para mostrar aos pequenos produtores de Goiás que existe queijo além de muçarela, coalho ou frescal. Hoje, me preparo para uma nova etapa. Saí da antiga fazenda e vou começar a produzir em outra cidade, em uma fazenda onde o gado é bem tratado, o meio ambiente é preservado e as instalações da queijaria são mais adequadas. Estou pronta para profissionalizar a produção e criar novas receitas.

Os planos para o futuro: Estou lançando com um sócio em Brasília o local onde vamos consagrar nosso amor a esses dois produtos frutos da fermentação: queijo e cerveja. Em fevereiro vamos abrir o Teta Cheese Bar. Vai ser uma loja diferente, dentro de um bar de cervejas especiais com uma cozinha onde o queijo será a estrela.

Aline Biasuz, 32, do sucesso nas barbearias para um empório especializado em queijo

Empresária da estética, Aline decidiu se dedicar ao queijo artesanal. FOTO: Aline Biazus/Acervo Pessoal.

Trajetória: Nasci e vivi no interior do Rio Grande do Sul até meus 15 anos. Cresci em meio a natureza, tratando porco, tirando leite, colhendo ovos, cuidando das vacas nos pastos, pescando, subindo em árvores. Tive a melhor infância do mundo. Sempre amei vaca, nós tínhamos a Princesa, Pedrita, Estrela (era a mais meiga de todas) e a Salina. Todas eram tratadas pelo nome, tirávamos leite manualmente e às vezes brincávamos de “guerrinha de leite” com as tetas das vacas. Fazíamos queijo todos os dias. Lembro que a mãe brigava se o leite aquecia demais no fogão a lenha, pois o queijo ficava muito amarelo e cozido.

Com 15 anos perdemos quase tudo em virtude das secas na lavoura. Decidimos vender o que restou para tentar a vida na cidade. Eu comecei a trabalhar cedo pra ajudar em casa, sempre sonhei em ser grande, em ser uma empresária de sucesso e batalhei por isso sem perder a graça da vida! Com 28 anos conheci minha esposa que acreditou em meu potencial e em 2014 fundamos nossa primeira Barbearia, um conceito de alto padrão em Passo Fundo. Em 2015 abrimos a segunda, em 2016 a terceira em Porto Alegre. Nesse mesmo ano reestruturamos o salão de beleza da minha esposa a partir de um novo conceito. Tudo nos negócios ia super bem, mas faltava algo mais.

A decisão: Em março de 2017 tive a inspiração de montar o Armazém Nona Joana. Ao assistir a série Chefs Table percebi que no alimento podemos imprimir a nossa alma, nosso amor, nossa liberdade. Descobri que queijos são como a vida, se transformam a cada dia, um dia mais cremoso, outro mais picante, depois mais intenso ou doce. Posso dizer que descobri no queijo a conexão que faltava para minha vida. Hoje a ambição me soa mais suave, não é só o dinheiro que almejo. Eu desejo o sabor, a leveza da realização. Sei que por esse caminho minha vida está apenas começando.

Meus olhos brilharam novamente e descobri que o amor que sempre tive pelas vacas era a indicação que minha vida seguiria por esse rumo: o queijo. O nome Nona Joana é em homenagem a minha avó que me ensinou muito em vida, inclusive a fazer manteiga. O armazém se tornou meu lazer preferido, fazendo tábuas de queijo, estudando e descobrindo sabores, vendo nas pessoas a reação de surpresa e prazer quando provam um queijo que nunca viram. Até então tudo o que faço é com muito amor, carinho e dedicação, mas sempre quis refazer essa conexão com o mato, relembrar das minhas raízes, da minha simplicidade.

Os planos para o futuro: quero me profissionalizar cada vez mais, estudar muito. Em abril de 2018 farei um curso de especialização em venda de queijos e análise sensorial na França, na Academia Opus Caseus, da Maison Mons. Eu quero aprender para explicar aos meus clientes as melhores harmonizações, quero saber tratar dos queijos, que são produtos vivos, enquanto estiverem na minha loja, quero saber escolher e selecionar produtos melhores.

As informações são do Blog Só Queijo, do Paladar Estadão.

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