O transporte de bezerros machos leiteiros para fazendas de engorda, trazem uma solução para a pecuária leiteira, porém têm-se alguns desafios!
O nascimento de um bezerro macho em uma fazenda leiteira dificilmente é motivo de comemoração. É um animal que não tem utilidade nesse sistema de produção e muito se gastou antes mesmo dele nascer, com protocolos de IATF e inseminação. Uma vez que a chance de nascer um bezerro macho a partir de uma inseminação com sêmen convencional é de 50%, percebe-se que o rebanho de machos leiteiros é enorme.
Dados das fazendas pertencentes ao Programa ALTA CRIA mostram que 32% conseguem vender os machos ainda na primeira semana de vida, 21% doam os machos na primeira semana de vida, 16% criam para engorda na própria fazenda, 11% criam para venda futura como tourinhos, 8% abatem na fazenda logo após o nascimento e 12% vendem ou doam após o desaleitamento.
O que precisamos encarar é o fato de que o consumidor está cada vez mais exigente com as condições que os animais que dão origem ao produto que ele adquire estão vivendo. Aliado a isso, existe também a pressão de órgãos ligados ao bem-estar animal. Surge então, a necessidade de buscarmos uma alternativa para o aproveitamento desses bezerros machos leiteiros, mas que também seja economicamente viável para o produtor rural.
Em diversos países da Europa o aproveitamento dos bezerros de rebanhos leiteiros para a produção de carne é uma realidade e representa uma parcela significativa da carne consumida pela população. Itália e França são grandes produtores e consumidores da carne de vitelo. No Brasil, o consumo da carne de vitelo e a produção da mesma não são uma prática comum, mas já existe um mercado que se localiza nos grandes centros de olho nesse produto. A expectativa é que a demanda por esse tipo de carne cresça, com possibilidade de comercialização para o mercado externo.
A engorda dos machos leiteiros se mostra como uma excelente possibilidade de agregar renda para o produtor rural e resolver as questões de bem-estar animal relacionadas ao descarte desses machos. Sendo assim, essa atividade é uma ótima saída para o produtor de leite e parece ser a solução para esse grande problema. Dietas de grão inteiro exclusivas de concentrado ou com adição de milheto ou sorgo podem ser utilizadas para a engorda de bezerros machos leiteiros visando à produção de carne, proporcionando bom desempenho desses animais até 10 meses de idade (Tabela 1).
No entanto, existe um desafio nessa prática que é o transporte desses animais da fazenda de onde nasceram para as fazendas de engorda. Esse é um ponto chave para o sucesso da criação de machos leiteiros e é considerado um gargalo para essa atividade, ainda mais no Brasil, com logística deficiente e clima tropical. Imagine um bezerro ser transportado por 6 horas em um dia de verão. Sem dúvida, esse é um grande desafio.
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Os efeitos causados pelo transporte dos bezerros estão relacionados a diversos fatores, como a idade do animal, o manuseio do bezerro durante o carregamento e descarregamento, a nutrição pré-transporte, privação de água e comida, condições extremas de temperatura e umidade, superlotação, assim como a duração do transporte, tipo de veículo utilizado, velocidade e ruídos durante a viagem.
A mistura de animais de diferentes fazendas leiteiras e a mudança de ambiente são desafios que os jovens animais enfrentam. O colostro ingerido pelo bezerro possui anticorpos para os patógenos pelos quais sua mãe foi desafiada durante a vida. Como os desafios variam de acordo com a fazenda, essa mistura de animais faz com que haja o contato com microrganismos para os quais ele não tem proteção, causando diversas enfermidades.
Aliado a isso, o estresse causado durante o deslocamento dos animais resulta em uma imunossupressão geral que permite que o trato respiratório seja invadido por inúmeros patógenos oportunistas e as consequências do mesmo podem ser muito danosas e afetar o desemprenho do animal na engorda. Uma das principais doenças que acometem os bezerros que chegam às fazendas de engorda é a doença respiratória bovina (BRD). Os principais microrganismos envolvidos na BRD são o vírus da Diarreia viral bovina (BVDV), vírus da Parainfluenza tipo 3 (PI3), vírus da Ronotraqueíte infecciosa bovina (IBR), vírus Respiratório sincicial bovino (BRSV), Mannheimia haemolytica e Pasteurella multocida A e D. A doença pode se manifestar de forma clínica e subclínica e os prejuízos podem ser grandes, pois o animal não come bem, reduz sua conversão alimentar, transmite os vírus e bactérias para outros animais do rebanho, além dos gastos com tratamento, que será necessário.
O Brasil possui grande extensão territorial, então, muitas vezes, o transporte desses animais dura muito tempo. Sendo assim, a duração da viagem torna-se um fator importante. Os bezerros chegam à fazenda de engorda com maior percentual de desidratação e maior perda de peso corporal, quando comparado à animais que experimentam curtas viagens. A desidratação se deve ao ambiente, muita vezes com altas temperaturas, à privação de água e alimentos durante a viagem e à alimentação no pré transporte.
A alimentação desses machos leiteiros no pré-transporte geralmente é feita com leite ou com solução de eletrólitos. Quando se relaciona o grau de desidratação, o tipo de alimentação e a duração da viagem a solução com eletrólitos fornece uma taxa imediata de hidratação porque a absorção dessa mistura é mais rápida no intestino. Porém, o leite possui melhor efeito, principalmente para longas viagens, pois, por ser mais energético, leva à uma taxa de expansão de volume mais lenta e mais duradoura, fazendo com que os bezerros apresentem menor grau de desidratação. Outra grande importância da alimentação com o leite está relacionada à perda de peso. Por ser muito energético, o leite faz com que os bezerros precisem mobilizar menos gordura de suas reservas corporais, bem como quebrar menos proteína dos músculos, perdendo, então, menos peso quando comparados a animais que recebem soluções de eletrólitos, que ficam sem energia disponível rapidamente. Logo, fica clara a importância da alimentação dos bezerros com leite no pré-transporte.
Durante o transporte os animais tendem a deitar para descansar porque assim eles conseguem regular melhor sua temperatura. Entretanto, não é recomendado que os bezerros fiquem deitados, pois isso aumenta o risco deles serem pisoteados pelos seus companheiros, causando escoriações, hematomas e até fraturas. Uma alternativa que pode ser adotada é a parada para descanso dos animais. Isso evita, inclusive, que os mesmos tenham lesões musculares nos membros por ficarem muito tempo em pé. Em casos em que a viagem dure mais de 8 horas, faz-se necessário prover alimentação e água aos animais, ação que traz grandes benefícios para o rendimento do mesmo na fazenda e atende às necessidades de bem-estar. Além disso, ajustes no ambiente de transporte, como temperatura, densidade de estocagem (Tabela 2), distância e tipo de estrada percorrida, podem também reduzir o estresse do transporte.
O fundo do caminhão deve ser forrado com feno velho ou serragem para que os dejetos sejam absorvidos, evitando a queda dos mesmos durante a movimentação nas vias públicas. Quando o transporte tiver duração superior a 8 horas, o feno ou serragem em quantidade de 8-10 kg/m² é essencial para permitir o descanso dos animais. É fundamental também que o motorista tenha experiência no transporte desse tipo de carga e receba treinamento específico sobre o comportamento dos bovinos e suas necessidades, reduzindo os riscos de problemas relacionados ao bem-estar animal e evitando que os bezerros se machuquem ou até mesmo caiam do veículo.
A glândula adrenal tem sua atividade aumentada com o estresse do transporte, levando a uma elevação na concentração de cortisol no sangue. Os efeitos desse estresse podem ser vistos a olho nu, antes da realização de qualquer análise laboratorial, pela alteração dos parâmetros fisiológicos da temperatura retal, frequência cardíaca e frequência respiratória. Com relação aos exames laboratoriais, o estresse causado pelo transporte pode ser visto por diversas alterações bioquímicas. O balanço eletrolítico é afetado, como o de cálcio e magnésio, importantes macrominerais que possuem funções essenciais na sinalização do corpo e enzimas, devido a resposta de medo desencadeada pelos bezerros. Também são observados aumentos na ureia plasmática, consequência da quebra de proteínas dos músculos, assim como em enzimas como aspartato aminotransferase, alanina aminotransferase e creatina fosfato cinase, que aumentam no sangue após lesão tecidual. Os altos níveis de ácidos graxos não esterificados e glicose plasmática indicam a utilização de gordura corporal e de glicogênio dos músculos, respectivamente, devido à privação de alimento.
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No Brasil, o transporte de animais de produção ou interesse econômico segue as orientações da resolução nº 675 de 21 de Junho de 2017 elaborada pelo Conselho Nacional de Trânsito (CONTRAN). No entanto, diferente do que acontece na União Europeia, não temos um guia oficial completo e bem detalhado de boas práticas no transporte de gado, as orientações no Brasil são muito superficiais e inespecíficas. Seria interessante que o CONTRAN juntamente com o Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento (MAPA) e outros órgãos governamentais estabelecessem determinações mais detalhadas de como transportar esses animais de forma segura e atendendo às necessidades de bem-estar, visando também garantir uma fiscalização eficiente.
A engorda de machos leiteiros é uma solução para os problemas relacionados ao descarte dos mesmos nos primeiros dias de vida, pois além de resolver as questões éticas relacionadas ao bem-estar animal, também abre portas para aumentar a renda do produtor de leite, podendo ser um excelente negócio devido ao grande potencial de mercado. Entretanto, o transporte desses bezerros para outras fazendas é um gargalo na execução dessa prática. O estresse gerado nos animais pelo transporte, assim como a exposição dos mesmos à patógenos e desafios quando ainda são tão novos pode causar grandes problemas. A eliminação total dos fatores de estresse causados pelo transporte para os machos leiteiros é impossível, mas estratégias para minimizá-los ao máximo são essenciais para o bem-estar e produtividade dos mesmos. Temos que começar a pensar e estudar mais sobre o que fazer com os machos leiteiros. Empresas da nutrição animal precisam estabelecer protocolos de engorda desses animais, assim como fazem para bovinos de corte em confinamento. Com isso, poderemos ter um novo mercado a explorar.
Fonte: Marcato et al. (2019) Effects of pretransport diet, trasport duration, and type of vehicle on physiological status of young veal calves. J. Dairy Sci. 103, 3505-3520.
Sobre os autores:
Polyana Pizzi Rotta é professora de Produção e Nutrição de Bovinos de Leite da Universidade Federal de Viçosa e coordenadora do Programa Família do Leite;
Letícia Guerra Piuzana é graduanda em Medicina Veterinária e membro do Programa Família do Leite;
Bernardo Magalhães Martins é zootecnista da Universidade Federal de Viçosa e técnico do Programa Família do Leite.