Moratória da soja ameaça agricultores que cumprem a lei

Sustentabilidade seletiva levanta debate: proteção ambiental ou barreira comercial disfarçada? Compromisso ambiental entre tradings impõe barreiras que extrapolam a lei e afetam produtores regulares

Por Bianca Ariel Lira* – A chamada Moratória da Soja é um compromisso privado, firmado por importantes compradoras e entidades setoriais, para não adquirir soja produzida em áreas do Bioma Amazônia com supressão de vegetação após 22 de julho de 2008. Esse compromisso, estruturado com governança própria e rotinas anuais de monitoramento e auditoria, passou a influenciar contratos, critérios de recebimento e cadastros internos de compradores.

Historicamente, o arranjo surge em 2006 no ambiente associativo de ABIOVE e ANEC, com participação de grandes tradings com atuação nacional e internacional, o que explica sua influência sobre padrões de compra e rotinas de auditoria no setor, e hoje envolve cerca de 30 empresas, entre elas Bunge, Cargill, ADM, COFCO e LDC que “respondem por quase toda a comercialização da oleaginosa produzida no bioma”, segundo registros setoriais.

Como compromisso privado de grande capilaridade, a Moratória passou a influenciar contratos de compra, com cláusulas de vinculação aos seus critérios e procedimentos de auditoria baseados em imagens de satélite e listas de conformidade, com a recusa de recebimento quando constatada supressão de vegetação em desconformidade com o pacto, inclusive em hipóteses formalmente regulares perante o Código Florestal com a manutenção dos produtores em listas de restrição.

Em 2023, foi identificada uma lista com mais de 2.500 CPFs e CNPJs associados a imóveis nos estados do AP, MA, MT, PA, RO e RR, o que evidencia a materialidade e a escala do fenômeno.

É importante ressaltar que, a Moratória da Soja incide exclusivamente sobre a soja, e não sobre outros grãos ou culturas, dessa forma não se trata de um pacto geral de vedação ao desmatamento, mas de restrição à aquisição de soja proveniente de áreas com supressão de vegetação.

Em termos práticos, o produtor pode plantar outra cultura e as mesmas tradings podem negociá-la normalmente. Essa seletividade fragiliza a alegação de finalidade ambiental estrita, pois o objetivo declarado perderia sentido caso houvesse simples migração para outra cultura.

Trata-se de iniciativa relevante no cenário de sustentabilidade, mas que exige leitura técnica cuidadosa para que seus efeitos se mantenham compatíveis com a legislação vigente e com a realidade produtiva do campo.

Do ponto de vista jurídico-ambiental, o ordenamento brasileiro já oferece um arcabouço legal suficiente: o Código Florestal (Lei 12.651/2012) trouxe um regime completo de produção em áreas consolidadas, de proteção de vegetação nativa, de regularização via Cadastro Ambiental Rural (CAR) e de instrumentos para recompor passivos ambientais e disciplina percentuais de Reserva Legal (na Amazônia Legal, 80% em área de floresta, 35% em cerrado e 20% em campos gerais) e a proteção das Áreas de Preservação Permanente.

O CAR, por sua vez, consolida a fotografia do imóvel com informações sobre o perímetro, APP, Reserva Legal e áreas consolidadas, e ancora programas de recomposição quando houver passivos. Em outras palavras, a lei define com precisão onde se pode produzir, como se regularizar quando necessário e quais são as salvaguardas ambientais a observar. De igual modo a Constituição Federal concilia, proteção ambiental, livre iniciativa, livre concorrência, função social da propriedade e desenvolvimento regional. É nesse sentido, que objetivos ambientais legítimos podem caminhar melhor quando se apoiam em processos técnicos transparentes e compatíveis com a legislação de base.

A Moratória da Soja precisa dialogar com o que a lei já estabelece, uma vez que, quando um pacto entre agentes privados cria filtros mais restritivos que os parâmetros legais, e os transforma em condição universal de compra, desloca-se o centro de gravidade: o que deveria ser uma política interna de gestão de risco vira, na prática, uma barreira de entrada com impacto concorrencial, financeiro e reputacional sobre milhares de produtores de soja.

O ponto sensível, e que interessa ao produtor que cumpre a lei, é quando regras privadas passam a valer como se fossem um “piso legal” novo, mais duro do que o Código Florestal exige, fechando portas comerciais para quem está regular, mantém Reserva Legal e APP dentro dos percentuais, adere aos programas de recomposição quando necessário e faz tudo às claras no georreferenciamento.

Na prática, esse compromisso saiu dos comunicados institucionais e entrou no dia a dia dos contratos: virou cláusula padronizada, gatilho de auditoria, critério de bloqueio em cadastros internos e, muitas vezes, fundamento para a recusa pura e simples de compra e isso tem afetado preço, crédito, barter e planejamento de safra.

Há ainda um problema processual de fundo: quem decide se uma plantação está ou não “em conformidade” com a moratória? Em geral, não é o órgão ambiental, mas um auditor contratado pela própria compradora, aplicando critérios internos e janelas de corte definidas na Moratória.

Primeiro, decisões que restrinjam compra devem vir acompanhadas de motivação técnica suficiente, com identificação precisa dos polígonos questionados e das bases cartográficas utilizadas. Segundo o produtor precisa ter acesso ao relatório ou, ao menos, a informações que permitam refazer a análise: sem isso, não há como contestar eventual equívoco de perímetro, de data de corte ou de classificação de áreas consolidadas. Terceiro, quando a documentação pública comprova regularidade ambiental, a solução preferencial é administrativa, com revisão pontual e correção célere — porque é no tempo da colheita, do barter e das obrigações financeiras que a previsibilidade faz diferença.

Se, apesar disso, o produtor enfrentar negativa injustificada ou permanecer em “lista restrita” por critérios que extrapolam a legislação de base, existem providências proporcionais e graduais que podem ser buscadas para assegurar o escoamento regular da produção, inclusive tutelas voltadas a viabilizar o recebimento quando houver risco concreto de perecimento do direito e, se houver demonstração objetiva de prejuízo, avaliar responsabilização pelos danos efetivamente comprovados.

Regras privadas podem e devem existir para qualificar cadeias e mitigar riscos, mas não podem funcionar como um filtro absoluto que desestrutura mercados regionais, empurra pequenos e médios produtores para a margem, reduz liquidez local e induz concentração de poder de compra. A lei já oferece as ferramentas para separar o joio do trigo: quem está irregular responde nos foros próprios; quem está regular precisa de previsibilidade para semear, colher, financiar e cumprir contratos.

Sustentabilidade é valor incontornável do agronegócio brasileiro e ganha força quando caminha com segurança jurídica. A Moratória da Soja pode cumprir seu papel sem se sobrepor ao Código Florestal, desde que as rotinas de monitoramento e auditoria assegurem transparência, verificabilidade e possibilidade real de correção.

Se você produz dentro dos parâmetros do Código Florestal e foi surpreendido por uma recusa baseada em “moratória”, há espaço para reverter o quadro com técnica e firmeza, pois sustentabilidade não precisa ser sinônimo de insegurança. Quando os papéis estão em ordem e a prova é bem construída, o mercado tende a se reabrir e, quando não se reabre voluntariamente, a Justiça tem instrumentos para fazer valer a lei.

Bianca Ariel Lira é advogada especialista em direto civil da banca João Domingos Advogados

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