COVID-19: O que o pecuarista pode aprender com isso?

Que, após essa duríssima travessia até o fim dessa pandemia, tenhamos mais uma grande vitória e muitos aprendizados colocados em prática.

Neste feriado de 21 de abril, o pesquisador Sérgio Raposo de Medeiros, da Embrapa Pecuária Sudeste, traz alguns enfrentamentos que estão na ordem do dia dos produtores rurais, impostos pelo novo coronavírus.

Não há como escapar. Aonde quer se busque alguma informação, o novo coronavírus dá o ar de sua (des)graça. Não fugiremos à regra, mas tentando aproveitar as muitas lições oferecidas por ele. Segue a tentativa abaixo, procurando colocá-las também no contexto do ambiente rural, na esperança de também dar algum alento em meio a tanta dor e incerteza:

Humildade: Nós, os Homo sapiens, ocupamos todos os espaços do planeta terra, chegamos à Lua, mandamos sondas para o espaço interestrelar, deciframos nosso genoma e já temos ferramentas para repará-lo (ou aperfeiçoá-lo). Esses inúmeros feitos fantásticos acabam criando um sentido inflado de autossuficiência e arrogância. Pois bem, um envelopinho proteico-gorduroso com vinte nove pares de genes foi capaz de dar um “freio de arrumação” na humanidade, expondo nossas imensas limitações e impressionantes vulnerabilidades frente a um inimigo de estatura nanométrica. Colocando na nossa vida rural, podemos lembrar das vezes que, como um setor tão fundamental para a economia, ao recebermos críticas, com ou sem algum fundamento, respondemos sem pensar e sem procurar entender os motivos dos ataques, criando uma imagem arrogante e, frequentemente, apenas amplificando-os. Uma abordagem mais empática, ou seja, colocando-se no lugar de quem crítica e humildemente procurando reconhecer se não temos como progredir em algo. Pode ser o começo de um novo processo de melhoria e valer por muitas campanhas de publicidade.

Simplicidade: Além da lição desse Ippon que o “simples” (29 genes) deu, deixando o “complexo” (3 bilhões  de genes) prostrado no tatame, chamou muito a atenção ser o prosaiquíssimo ato de lavar as mãos uma das medidas mais eficazes para controlar a disseminação. E, nas fazendas, lembramos da legítima e correta procura de touros com DEP genômica, inseminação artificial em tempo fixo, balanças eletrônicas e aditivos de última geração, contudo descuidamos de coisas tão simples como o fornecimento do sal mineral, a qualidade e quantidade da água e a fertilidade do solo. Uma lembrança, então, para cada um rever como está se saindo no básico, pois o resultado do que se está construindo acima dele, depende muito disso.

Interdependência: Outra lição que talvez ainda nem todos tenham se dado conta da exata dimensão, é a importância de cada indivíduo para a vida em coletividade. Quando o isolamento social foi a receita encontrada para achatar a curva e tentar evitar o colapso de nosso sistema de saúde, tivemos que decidir quem seria mantido nas ruas para não faltar o básico. É muita gente, em muitos setores e pelas mais diversas razões. Mesmo com tantos ainda nas ruas e mais tantos outros no teletrabalho, a cada momento, percebemos algo do dia-a-dia que nos faz falta. Essa situação ajudou a revelar como somos dependentes uns dos outros e como todos são importantes para o todo funcionar. O médico tem habilidade para salvar o paciente em estado gravíssimo, entretanto, se o empregado responsável por fazer uma polia usada no respirador deixar de fazê-la, e o equipamento estiver inusável, só nos resta chorar mais uma morte. E no campo é a mesma coisa: do mais simples empregado ao mais estrelado consultor, todos ajudam juntos a fazer a diferença e devem ser tratados com o mesmo respeito e consideração. Quem age assim, ouve a todos sem preconceito, e costuma ter informações mais completas, permitindo melhores ajustes e decisões.

Solidariedade: É muito reconfortante testemunhar tantos atos de solidariedade espontâneos. São inúmeras iniciativas desprovidas de outro interesse que não atender à necessidade ou trazer algum conforto para o próximo. O setor rural tem uma longa tradição de beneficência, mas os bons exemplos podem incentivar mais ações e, principalmente, novas formas de fazê-las. Assim, mantendo as tão necessárias iniciativas de caridades pontuais, tentar, cada vez mais, associá-las àquelas mais estruturantes. Nesse sentido, nada melhor do que investir em educação, em especial, de crianças. O mundo está cada vez mais complexo e exigente e, portanto, melhorar o nível educacional é, não só o passaporte para um futuro melhor, como também a garantia de termos cidadãos mais capazes de entender o mundo e o papel de cada um nas crises, como a atual.

Criatividade: Impressiona, também, a capacidade das pessoas acharem alternativas criativas, desde aquelas para escapar do tédio do isolamento social até meios inovadores para salvar vidas. No primeiro caso, pode ser o jogo de bingo com vizinhos, cada um na sua varanda ou o frescobol jogado na janela de apartamentos diferentes no 11º andar do prédio. No caso do segundo caso, um bom exemplo é o uso de equipamentos de mergulho adaptados como respiradores aos enfermos graves de Covid-19. Entre a diversão e salvar vidas, surgem inúmeros exemplos de comerciantes e empresários achando formas de, sem quebrar o isolamento, reduzirem seus prejuízos, por exemplo, fazendo parcerias com negócios autorizados a funcionar para distribuir seu produto. Há também quem esteja fazendo vendas futuras com desconto e, até, parcerias com seus concorrentes. Também no meio rural é comum ser necessário improvisar e a criatividade sempre vicejou nos campos do Brasil, mas, exatamente nessa parte de parcerias parece haver chance de que algum desses novos modelos possa ser a inspiração que falta para incentivar parcerias visando à redução de custos, na compra, ou melhorar margem nas negociações de venda.

Relatividade dos números: A quantidade cavalar de números, gráficos logarítmicos e porcentagens aos quais temos sido expostos é um grande desafio para a quase totalidade da população, na qual me incluo, apesar de ter alguma vantagem por obra do meu ofício. Um ponto importante que esse vírus corona também veio no ensinar é como valores aparentemente pequenos podem esconder potencial de grandes danos. O coronavírus Sars-Cov-2, nome oficial do nosso atual pesadelo, e que causa a doença chamada Covid-19, tem hoje uma taxa de letalidade (TL) próxima de 3 %, todavia com grande variabilidade entre os dados de cada país. A TL, é simplesmente a divisão de quantas pessoas são reportadas como mortas pela Covid-19, pelo número de pessoas reportadas como infectadas. O principal motivo da variação é a grande incerteza dos dados, particularmente do denominador, pois sabemos que o número de infectados está imensamente subestimada. Neste início de abril, algumas inferências indicariam esse valor como perto de 1%. Exagerando o conservadorismo, vamos assumir uma TL dez vezes menor, 0,1%, ou seja uma pessoa morta a cada mil infectadas. Como o grande trunfo desse vírus é sua capacidade de alastramento, o denominador potencial do Brasil é 210 milhões de infectados, ou seja podemos prever até 200 mil mortos[1]até o final da pandemia. Logo, fica claro todo o cuidado necessário com porcentagens e as armadilhas escondidas em valores aparentemente pequenos. Trago um exemplo que envolve algo que afeta grande e diretamente o agro. Há alguns anos, fiz algumas considerações sobre isso no contexto das mudanças climáticas, rebatendo um dos argumentos usados por um “ilustre” negacionista. Segundo ele, o “…CO2 não subiu quase nada” de 0,0033%, em 1958, para 0,0040% atualmente, o que a maioria das pessoas, vendo tantos zeros do lado direito da vírgula, tenderia a concordar. A primeira indicação de má-fé científica é apresentar o valor como porcentagem, pois os valores de concentração de CO2 são usualmente comunicados em partes por milhão (ppm), evidentemente por ser muito melhor comunicar dessa forma (compare digitar uma forma e outra!). Seja qual for a unidade, o importante, contudo, é a magnitude da alteração que, no caso foi de 21% (400 ppm/330 ppm = 1,21). Comparado aos valores de meados do século XIX, previamente à Revolução Industrial, a variação é de quase 40%. O aumento do teor de CO2 é o grande motor do aquecimento global e a temperatura nesse mesmo período já aumentou quase 1º.C em relação à média pré-industrial. Muitas pessoas acreditam ser também esse valor pequeno, mas ele é gigantesco ao se considerar ser a temperatura média de toda a atmosfera do mundo. É muita energia. No fim, importa mesmo o quanto o aquecimento global se faz sentir, nos recordes de fenômenos extremos, como a última temporada de incêndios na Austrália, as secas recorrentes da Amazônia ou no desastre que foi a seca do Rio Grande do Sul nesta safra e tantos outros exemplos.

Informação: Outra grande vítima do novo vírus é a verdade. Uma parte das distorções têm ocorrido porque, infelizmente, uma questão de saúde pública foi cooptada pela política e, assim, cada grupo político se apossou de informações e as deu contexto ou, simplesmente, as deturpou, de acordo com à necessidade de adaptar àquela narrativa que justificaria seu ponto de vista. Mesmo muita gente imune à politicagem barata acaba contribuindo com a má informação ao repassar mensagens sem checá-las, primeiro através do filtro do bom-senso, mas, com um pouco mais de boa-vontade e energia, checando em fontes de notícias oficiais, fontes que tenham credibilidade ou, pelo menos, tenham CPF ou CNPJ identificáveis, de forma que possam ser devidamente questionadas e responsabilizadas. Na rotina da produção de alimentos, esse aprendizado é de grande valia, pois a boa informação é um insumo de produção, assim como sementes e adubo. Checar informações, identificando fontes mais seguras permite fazer escolhas mais racionais e facilmente se paga. O contrário também é verdadeiro: Fake news é prejuízo na certa!

Acreditar (mesmo que desconfiando) na Ciência: A ciência foi colocada no foco de todos por conta do novo vírus corona. Toda a humanidade se volta à ciência e mesmo as crianças esperam que “algum maluco de avental em um laboratório fedido”[2] encontre a bala de prata: uma vacina. Além disso há muitas outras contribuições científicas: as modelagens epidemiológicas, soluções de engenharia para equipamentos de saúde, teste de drogas, desenvolvimento de diagnósticos em tempo real e tantos outras. Num tempo abundante em terraplanistas, negacionistas das mudanças climáticas, movimentos anti-vacina e outras tendências obscurantistas com tanto espaço no mundo internético, talvez seja uma das principais lições a serem tiradas: não só dar mais ouvidos à ciência, mas estimular investimentos em cultura científica. Isso ajudaria a estimular futuros novos cientistas que enxergassem nessa profissão tanta atração quanto nas mais procuradas de hoje. Além de poder aumentar a base de talentos para a ciência, mesmo os jovens que seguirem outro caminho, serão certamente cidadãos mais capacitados para o julgamento de questões que frequentemente todos somos instados a opinar, como alimentos com transgênicos ou uso de células tronco. Antes que alguém me lembre: A ciência tem, sim, sua própria galeria de grandes micos, algo a se esperar, pois sendo uma atividade humana, reflete todas as qualidades e defeitos da espécie. Deve-se lembrar, contudo, que, mesmo quando a ciência coloca sua luz no caminho errado, em geral, é no exercício de mais ciência que se redireciona o foco e conseguimos retornar ao bom caminho.

Tempo de aprendizado: Nelson Mandela, o grande líder do movimento contra o Apartheid e,  após seu fim, pela pacificação na África do Sul, costumava dizer que na vida dele não havia derrotas, apenas vitórias e aprendizados, obviamente trocando as derrotas pelos ensinamentos proporcionados a ele.

…e de esperança: Que não nos falte humildade, solidariedade, criatividade, boas informações e boa ciência. Todas elas são fontes de esperança para renovar a crença de sairmos dessa melhores do que entramos. Que, após essa duríssima travessia até o fim dessa pandemia, tenhamos mais uma grande vitória e muitos aprendizados colocados em prática.

[1] Por isso a importância em retardar o avanço e não ter um colapso no sistema de saúde, que aumenta a letalidade da COVID-19 e de outras doenças, já existentes, por falta de leito. O tempo é importante também para, além da população ganhar naturalmente resistência, acharmos tratamentos mais efetivos aos enfermos do vírus e a solução definitiva que é a vacina.

[2] Foi assim que, numa pesquisa, a maioria das crianças representava os cientistas.

Compre Rural com informações da Embrapa e Portal DBO

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