
Da domesticação dos primeiros bovinos selvagens até os avanços genéticos que moldaram o Nelore no Brasil, a trajetória milenar da espécie revela como a seleção e a ciência transformaram a pecuária nacional em referência mundial de produtividade e qualidade
Há cerca de 10 mil anos, no Neolítico, os seres humanos deram início à domesticação do auroque (Bos primigenius), animal selvagem de grande porte, que habitava pradarias e savanas da Ásia, norte da África e Europa. Este bovídeo foi fundamental para o desenvolvimento agrário, fornecendo carne, leite, couro e força de tração para as primeiras comunidades agrícolas.
Pelas gravuras rupestres e registros arqueológicos, foi possível estimar que os auroques europeus chegavam a até 1,80 m de altura na cernelha, cerca de 3 metros de comprimento e peso próximo a 1.500 kg. Havia variação entre indivíduos conforme a região, bem como marcante dimorfismo sexual (machos maiores que fêmeas).
Um dos enigmas até recentemente foi como se deram as divisões entre as linhagens de bovinos europeus (Bos taurus) e das raças mais adaptadas ao clima quente e tropical, como os zebuínos (Bos indicus). Estudos genéticos modernos, como os conduzidos por Marta Pereira Verdugo (publicados em Science, 2019), usaram DNA antigo — mitocondrial e cromossomal — de ossos fossilizados do Oriente Próximo, Ásia Central e Península Balcânica, para traçar essas origens.
Principais conclusões desses estudos:
- O gado taurino foi domesticado no Crescente Fértil há cerca de 10.000 anos; o zebuínico, no Vale do Indo, cerca de 8.000 anos atrás.
- Inicialmente os taurinos não carregavam ancestralidade de zebuínos.
- A introdução de gado zebuíno ao norte da África decorreu de cruzamentos com animais locais taurinos, via machos zebuínos.
- A migração humana foi veículo para a dispersão desses bovinos: para Europa, África e Américas, com diversos cruzamentos entre taurinos e zebuínos.
- Hoje, existem cerca de 800 raças de bovinos no mundo, entre puras e híbridas; aproximadamente 480 raças taurinas predominantemente na Europa. No Brasil, há cerca de 60 raças, o que corresponde a ~7,5% do total global.

Projeto Taurus e ressuscitação do auroque
O último auroque selvagem morreu em 1627, na floresta de Jaktorów, Polônia. Desde 2008, o Projeto Taurus, liderado por Ronald Goderie e pela fundação holandesa Stichting Taurus, trabalha para recriar, através de melhoramento genético (back-breeding) e seleção, animais com características semelhantes aos do auroque, visando restaurar uma espécie capaz de atuar em ecossistemas selvagens europeus, enfrentando predadores e condições adversas.

Outras espécies destacadas
- Gayal (Bos frontalis): espécie semi-domesticada, presente em regiões montanhosas do leste da Índia, China, Butão etc., de porte grande, vida semi-livre, e com população ameaçada por caça e doenças.
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- Gauro (Bos gaurus): o maior bovídeo selvagem remanescente. Vive em partes da Ásia; sofre com redução de habitat, caça e doenças, e participa de estudos como possível linhagem ancestral em cruzamentos com zebuínos.

Genética, seleção e biodiversidade
Os avanços em genética, biologia molecular e arqueozoologia possibilitam mapear a ancestralidade dos bovinos, identificar genes ligados à resistência, adaptação a climas ou produtividade, mas também revelam riscos: a seleção artificial pode reduzir a diversidade genética, comprometendo linhagens locais.
Informações históricas e curiosidades adicionais
Aqui vão dados complementares, com base em pesquisas mais recentes:
- Domesticação e DNA antigo
- Estudos que usam DNA mitocondrial antigo (a maternidade genética) mostram que o gado taurino moderno descende de relativamente poucas linhagens maternas vindas do Oriente Próximo.
- Evidências arqueológicas indicam que os ossos de auroques nas primeiras aldeias cultivadoras já apresentavam tamanho reduzido em comparação com as formas selvagens, o que sugere seleção precoce para animais menores.
- Hibridização entre bovinos domésticos e auroques selvagens
- Na Península Ibérica, por exemplo, estudos identificaram que o gado doméstico herdou cerca de 20% dos gene-s de auroques europeus via cruzamentos antigos.
- Esses cruzamentos foram mais frequentes quando o gado doméstico expandia para territórios que ainda tinham populações selvagens de auroques.
- Tauros e rewilding moderno
- O projeto Tauros (ou Taurus Foundation) está ativo em vários países europeus, com esforços para reintroduzir bovinos com características morfológicas semelhantes às dos auroques. Em Portugal, por exemplo, já foram introduzidos rebanhos em vales selvagens como o do rio Côa.
- No Reino Unido, esperado para 2026, será feita a introdução de aproximadamente 15 tauros numa área de milhares de hectares nas Terras Altas da Escócia, para restabelecer funções ecológicas que estiveram ausentes desde a extinção do auroque.
- Curiosidades de porte e aparência
- Embora haja afirmações históricas de que alguns auroques chegavam a alturas superiores a 1,80 m na cernelha, reconstruções genéticas recentes e comparações com raças modernas sugerem variações altas, mas há incertezas nos relatos antigos.
- Os tauros modernos não são exatamente o auroque original, genetica ou comportamentalmente, mas refletem uma combinação de raças antigas que preservam traços como chifres longos, estrutura corporal robusta e comportamentos mais adaptados a vida em áreas rústicas.
- Importância ecológica
- Os grandes herbívoros como os auroques ou seus substitutos desempenham papel ecológico vital: controle da vegetação, manutenção de habitats abertos, dispersão de sementes, aportes de matéria orgânica via dejetos, entre outros. Seu desaparecimento ou diminuição pode causar mudanças estruturais em ecossistemas.
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Dos imponentes auroques, considerados os primeiros bovinos domesticados há milhares de anos, até os dias atuais, a evolução da espécie reflete uma trajetória de seleção e adaptação que moldou a pecuária mundial. No Brasil, esse processo encontrou no Nelore seu maior símbolo: a raça indiana que se adaptou como nenhuma outra às condições tropicais passou por intensos avanços genéticos nas últimas décadas, resultado de programas de melhoramento que priorizam precocidade, fertilidade, ganho de peso e qualidade de carcaça.
Essa linha do tempo, que começa com a domesticação dos primeiros bovinos, culmina hoje em um Nelore moderno, altamente produtivo e protagonista no cenário global da carne bovina.
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A domesticação dos bovinos marcou um divisor de águas na história da humanidade. Muito além de garantir carne, leite e couro, esses animais foram fundamentais para o avanço da agricultura, servindo como força de tração e permitindo a expansão das primeiras sociedades agrícolas. Desde os auroques selvagens até as raças modernas, a relação entre homem e gado moldou economias, culturas e paisagens ao redor do mundo, tornando os bovinos não apenas uma fonte de alimento, mas um dos pilares da civilização
Com informações do artigo de Edino Camoleze via CNA
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